terça-feira, 19 de agosto de 2014


A EXPERIÊNCIA DA INSEGURANÇA


Índia, Kerala – Kaurangad, 1979. Aqui mora uma santa. Viemos vê-la. Viajamos de ônibus, trem de ferro sacudindo, o corpo doendo. Receberam-nos com carinho. Nos Ashrams sempre existem lugares. Os visitantes querem paz, rezam pela paz. Não se cobra nada aqui, paga-se o quanto se pode dar. Uma amiga foi quem primeiro indicou esse Ashram no ano passado. Veio da Alemanha buscando a paz e o reino de Deus aqui na Terra. Procura uma vida de segurança, sem conflitos, rezando e cantando. Encontrei aquele rapaz que me ajudou no ano passado. Está mais pálido, falando pouco e desfia constantemente um rosário indiano denominado Mala. Passa os dias repetindo o mantra. O mantra repetido 108 vezes traz um estado de paz. Sento-me na grande sala forrada de esteiras e ouço os mantras cantados. Homens de um lado, mulheres de outro.
A santa, denominada “Mãe” veio pessoalmente rezar pelo mundo. É velhinha, tem 80 anos e dirige o Ashram. Os devotos ficam horas rezando em conjunto. A Mãe simboliza a energia Shakti. Olhar de bondade e paz. As pessoas se inclinam e lhe beijam os pés. Sinto-me longe, tão longe desses rituais que, para não continuar representando, apronto as malas para viajar no dia seguinte. Fica a lembrança do cozinheiro bigodudo com três filhos, sempre alegre, dos sadhus comendo de graça (um deles mora na floresta, veste-se com dois panos brancos).  Uma das devotas tem o cabelo cortado como homem, já foi casada, separou, superou o sexo, morou numa gruta três anos. Cada um tem um modo diferente de crescer. O dela foi assim, libertar-se do desejo de segurança. Nós agora estamos todos nos libertando também, mas de acordo com o nosso carma.

Insegurança é correr para apanhar o trem andando, o indiano na frente tampando a passagem, Beth, minha jovem amiga brasileira dentro do vagão, correndo o risco de viajar sozinha. Empurraram-me, entrei nem sei como. O maquinista do trem me disse: “Deus te protegeu”.
Estou viajando de novo. Lá fora os coqueiros passam, coqueiros e mais coqueiros. Agora estamos atrás de um hotel.  Indicaram-nos o Maritani tem até “Cabaret Hall”. Chegamos cansadas e nada de poder dormir. A música tocou a noite toda!  Que diferença de situações! Primeiro o Ashram, a pura paz, a segurança, todo mundo rezando e cantando e agora o outro lado da vida. O hotel barulhento, discoteca. Foi difícil dormir apesar do cansaço. De novo num ônibus, malas nas mãos, sacudidas pela poeira dos caminhos. Beth  procura uma clínica  chamada “Nature Cure”, que a sua imaginação transformou numa espécie de “SPA”, onde poderíamos nos recuperar do cansaço de tantas viagens. Bem que eu não tinha fé neste programa. Andamos, chegamos e voltamos, não tinha vaga.
Aqui em Kerala o governo é comunista. Hospitais com bandeiras vermelhas, foice e martelo nas repartições públicas. Bandeiras ventilando nas sacadas. A Índia é um país democrático, considerada a maior democracia do mundo, e em alguns estados governa o partido comunista.
Kerala parece um lugar mais organizado. Calicut é porto de mar, tem cheiro de peixe. Há 500 anos atrás, Vasco da Gama aqui esteve com suas caravelas. Em Calicut existem muitas farmácias ayruvedicas. Parece que eles estão se libertando da indústria de remédios estrangeiros e vendendo e estimulando o tratamento através de plantas. Ayruvedica é a medicina antiga ensinada nos Vedas. Muita coisa se perdeu porque não foi transmitida. Aqui quase toda farmácia é Ayruvedica e este hospital do governo está super lotado, não há vagas. Ouvimos isso o dia todo. Não há vagas... Tudo tem que ser marcado com antecedência. Voltamos para o mesmo hotel. É difícil viver a experiência da insegurança. As viagens se transformam em crescimento quando através de experiências “de risco”percebemos o quanto somos protegidos  (Diário de Viagem à Índia, 1979)

*Fotos da internet


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terça-feira, 5 de agosto de 2014


VIAJANTES CONSUMISTAS

Viajar é bom para o auto conhecimento. Ficamos sabendo como somos quando arrumamos nossas malas. Quanto maior a bagagem, maior nossa insegurança. Queremos levar tudo, carregar a proteção nas costas, cruzar o rio da vida com os pertences. São roupas, sapatos, compras, livros, remédios. Observo as pessoas em torno, como são despojadas!
“Mas sua bagagem é só isto?”
Dois vestidos e uma sandália. A beleza de Patna é interior, ela não precisa variar de roupa. Veio de Israel, foi iniciada na Inglaterra, agora corre a Índia. Permaneceu em Madras três meses, participou de palestras, conferências, danças, fazia pesquisas na biblioteca. Quando ia a um curso de bonecos no centro, voltava com os olhos brilhantes de alegria. Sua bagagem aumentou com dois bonecos feitos por ela mesma. Aqui não há a preocupação de consumir.
Shanta partiu para Lunawa com pouca coisa. Não tem casa, perdeu tudo e ainda espera da vida. Veio do Líbano. Encontramo-nos na enorme varanda.  Passa gente lá em baixo e olha para cima com curiosidade. Os indianos são curiosos e sorriem. Nós somos brancas. Shanta ao meu lado, pesquisa livros naturistas. “Nature cure” é o seu darma. Às vezes a vejo cercada de pássaros. Outras vezes cuidando das plantas “Vou a Delhi para um curso especializado, mas em janeiro estarei de volta.” Há uma simplicidade em dizer “I’m a homeless lady”. Uma pessoa sem lar, sem casa, viajando com poucas malas. O consumo não existe para esta gente, pois o consumo exige um lugar para se depositar coisas. Armários embutidos, prateleiras, armários cheios de bagulhos.
Viver o agora é despojar-se de tudo, morrer para o passado, os apegos, as coisas acumuladas. As pessoas de um modo geral são “homeless” aqui. Suzy foi professora, largou tudo. Fico lembrando as palavras de Rubens, um teosofista vindo de Kênia, África. “Conhecimento adquiri-se em livros, mas a sabedoria só nos chega através da experiência.” Viajar nos mostra a vida logo em seus múltiplos aspectos, chega-se à conclusão de que o acumulo e o consumo não levam a nada. É como a serpente comendo o próprio rabo. Compra-se, satisfaz-se um desejo e ele nos envolve. O não consumo é a sabedoria. Aquela italiana com um coque amarrado no alto da cabeça só tem duas roupas. “Tive de optar, ou viajo e aprendo, ou compro e não aprendo”. As roupas já estão desbotadas, mas a filhinha de 6 anos está feliz porque está sempre com a mãe, que aprende a fazer bonecos, estuda música e pretende ensinar na Itália o que aprendeu na Índia.
Aqui nesta comunidade moramos em quartos com banheiro coletivo. Lavamos roupa no tanque, onde às vezes encontramos amigos para um bate papo internacional. Lisa nos fala da Inglaterra. Já foi chofer de taxi, agora está aqui, aprendendo na universidade da vida. Procura ajudar todo mundo. Há uma vibração intensa de amor e compaixão. Todos têm a sua história e se encontram junto ao tanque de lavar roupa.

*Fotos de Maria Helena Andrés e da internet


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