terça-feira, 18 de novembro de 2014


O BARQUEIRO E O MACACO

 O barqueiro nos conduziu pelas ruas estreitas de Benares. Era magro, enrolado num manto vermelho – “Com a chuva não tem passagem para vocês irem até lá...” Apontou o templo, as luzinhas já brilhavam no meio da névoa. Chovera muito e as ruas estavam alagadas. Tentamos chegar até a escola de sânscrito, mas a água chegara até os degraus da escada. Agora o barqueiro descrevia em inglês oficial, entrecortado de palavras da língua local. “Não tem passagem” vão deslizar na escada – “Só de barco.”.
Descemos com dificuldade para não escorregar. Lá embaixo as águas do rio Ganges traziam memórias de cerimônias, cremações, flores amareladas jogadas nos rituais, pedaços de carcaças que envolvem os defuntos. “Não entre no barco!” ele pode afundar, eu posso tropeçar... Lembrei dos dólares guardados na cintura. O caminho até o barco era estreito, depois aquela água cheia de coisas, resíduos, nem sei de quê. O barqueiro insistiu “Mama, não tem perigo, eu seguro seu braço!” – “Não, quando voltarmos já estará escuro.” Desisti de ir – Preferi subir de novo as escadarias, entrar pelos becos escuros, seguir a trilha dos devotos. Entramos num templo, cerimônia de puja, lá dentro as luzes brilhavam em cada nicho: incenso, velas, sinos tocando. A noite nesses templos antigos de mais de dois mil anos é impressionante. Velhos vestidos de alaranjado tocam sinos, rodeiam o templo, cantam mantras. O som dos sinos atravessa todos os labirintos do ouvido, estremece o corpo, retorna a alma para um passado remoto. Chocalhos, sinos reverenciam os deuses.
Benares nos remete ao passado, mas também de maneira às vezes violenta, nos traz de volta ao presente.
O presente é aquele falso brâmane cantando mantras, colocando flores no pescoço dos estrangeiros, propiciando um momento de encantamento para depois exigir dinheiro, comercializando os momentos de devoção. “A corrupção do ótimo é o péssimo” já dizia meu marido. Agora estou vendo pela própria experiência o ótimo se transformar em péssimo. O episódio do macaco culminou com a nossa vinda para a Fundação Krishnamurti  numa decisão irrevogável. Estava exausta, queria descansar, a experiência dos falsos brâmanes me deu consciência do outro lado de Benares, aquele que explora os turistas incautos.

Quando subia as escadarias que levam a um templo junto ao Ganges, senti dor no peito, um sentimento de pesar bateu fundo dentro de mim. Não consegui seguir o caminho, parei junto a uma loja de discos, vídeos, perfumes, pós de sândalo, cassetes. “Não consigo subir, vou parar aqui!”. O jovem comerciante ofereceu-me chá, colocou uma música relaxante, tratou-me com o carinho de um filho. Estava tão exausta que não podia mais dar um passo. A lojinha parecia um templo e o comerciante era um ser humano com a mente compassiva. “A senhora pode ficar, não vou exigir dinheiro...”
O contraste entre os falsos samurais e a compaixão do jovem comerciante me ajudou a respirar melhor. Mas, as experiências não terminaram. Neste mesmo dia, caí na escada do hotel, fui descansar em meu quarto. Dormi algum tempo, mas acordei com um barulho na janela. A cortina mexia e uma cara preta começou a surgir devagarinho pela fresta. De súbito um imenso macaco pulou no meu quarto. Havia uma bandeja com frutas e o macaco cobiçava as minhas bananas. Fiquei um instante paralisada, depois gritei com todas as forças do meu peito. “Help me, a monkey in my room!” O macaco olhou para mim com os olhinhos miúdos. De corpo inteiro com uma enorme cauda, parecia um monstro. “Help me”, gritava eu. Naquele momento eu precisava fugir mas não sabia onde estava a chave do quarto. “Help me!” Aterrorizada a minha voz ressoava pelo hotel. “There’s a monkey here!” O macaco parou e arrepiou inteirinho. Olhou para mim assustado e desistiu de roubar as bananas. Pulou pela janela, de volta aos terraços de onde viera. Os empregados do hotel vieram me ajudar, o dono do hotel se desculpou dizendo que era a segunda vez em treze anos que um macaco entrava num quarto.
Eu não quis saber de nada, nem mais um dia aqui! (Trecho de diário de Viagem à Índia)

*Fotos da internet

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quarta-feira, 12 de novembro de 2014


MEMÓRIAS DE BENARES

Hoje amanheceu chovendo – Benares com chuva significa barro, a poesia das ruas saindo nas enxurradas, carregando o lixo da beira das estradas. O movimento de gente diminui, as pessoas se recolhem. Também nós dedicamos mais tempo para escrever cartas e as páginas do diário vão descrevendo as impressões.
Hoje conseguimos descobrir o professor de sânscrito, da Universidade de Benares. Desde que aqui chegamos colocamos em mente esse objetivo. Agora ele está em nossa frente. Chegou envolvido num manto de lã. Foi amável e receptivo.
O professor é graduado, renomado, cheio de títulos. A casa é pobre, uma indiana veio nos receber, sem falar inglês. Passamos por roupas no varal e agora aqui estamos num espaço que é sala e quarto ao mesmo tempo. O professor de uns cinquenta anos escuta atento a uma jovem brasileira cantando de cor os mantras em sânscrito. Está admirado de alguém dedicar tanto tempo à sua cultura.
A cultura milenar da Índia pertence à humanidade, é necessário que se faça urgentemente a integração.
O professor foi-nos recomendado por um jovem médico de Delhi. As coisas se relacionam e as descobertas que fazemos na vida vêm todas do aparente acaso. Agora descubro que estão programadas. Foi preciso que eu chegasse exausta em Delhi, com dor na coluna; foi necessário me submeter à massagem Aurovédica para curar a dor nas costas. De repente, me vejo em Delhi, três mulheres jogando um óleo quente no meu corpo, como se eu fosse um sorvete com calda de chocolate. Uma hora todos os dias para curar a dor na coluna. Enquanto isto, minha filha lá fora conversava com o jovem médico. Foi aquele médico que nos apresentou a este professor de Benares.
Volto novamente para o presente. O professor vai viajar amanhã, mas reservou a tarde de hoje para nos ajudar. Meu pensamento voou para longe, lembrando a integração Oriente-Ocidente, mas um ratinho me puxou para o agora. Passou com aquela rapidez própria dos ratos, por debaixo dos meus pés. Meu corpo arrepiou todo, dei gritos irreprimíveis enquanto o professor dava risadas. “Amigo de Ganesh”, minha filha disse. Olhei para o quadro de Ganesh na parede. De fato, na Índia, ninguém gosta de fazer maldade com os animais. O ratinho parecia familiarizado com o quarto, subiu até na cama do professor! (trecho do diário de viagem à Índia, 1996)

*Fotos da internet

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