Artista plástica, ex-aluna de Guignard. Maria Helena Andrés tem um currículo extenso como artista, escritora e educadora, com mais de 60 anos de produção e 7 livros publicados. Neste blog, colocará seus relatos de viagens, suas reflexões e vivências cotidianas.
sábado, 30 de julho de 2011
CAMINHO DA LIBERTAÇÃO
O carro parou na estrada e descemos 300 degraus de uma escada de pedra.
O rio Ganges corria sereno, entre patamares e praias de areia branca.
Debaixo de arvores, no meio de pedras, existe um ashram escondido.
Dois homens vêm nos receber. Estão enrolados em panos acinzentados. Escolheram uma vida simples, inteiramente ligada à natureza. Crianças se acercam de nós. Uma delas me põe um pozinho de sândalo na testa para dar sorte e clarear os pensamentos.
Ali viveu durante muitos anos Swami Purushottamenendgi, o eremita de Rishikesh. Meditava dentro de uma gruta com uma lamparina de óleo junto à imagem de Shiva. Quando queria comer, ia à aldeia próxima e lhe davam fogo para cozinhar. Não usava fósforo nem tirava o fogo das pedras, mas conservava sempre acesa a sua lamparina. Até hoje podemos vê-la acesa, como o fogo sagrado que nunca se apaga.
O velho eremita era uma espécie de São Francisco da Índia. Conversava com os tigres e as cobras, dava comida aos peixes do rio. Sua vida estava ali, junto ao rio muito verde, escondido no meio da floresta. As lendas a seu respeito correm de boca em boca.
“Eu estava junto dele quando se aproximou uma cobra; tive medo, mas o Swami ordenou que ela se retirasse. A cobra, que preparava o bote, afastou-se de nós tranqüilamente”, isto nos informou seu jovem discípulo.
O velho swami um dia chamou os discípulos para avisá-los de que sua hora chegara e morreu, sentado em postura de lótus.
Hoje seu retrato é homenageado com colares de flores, junto à entrada da caverna.
Um menino de oito anos me segura as mãos e vou andando devagarinho, sem enxergar nada, só a lamparina brilhando no escuro. Aos poucos, das sombras vão surgindo formas, silhuetas.
O menino toca um sino e canta mantras. “Om namah shivaya”.
Os cânticos ressoaram dentro da gruta, fazendo coro com a flauta de Patrícia, a jovem brasileira que nos acompanhava. Filha da adida cultural do Brasil na Índia, andava sempre com uma pena de índio na cabeça, em homenagem aos índios brasileiros.
À saída, eles nos forneceram prasad, um doce feito com leite e coco, muito comum na Índia. Significava uma atenção para com o visitante, uma forma de saudá-lo. Todos os lugares sagrados oferecem prasad.
“Namaste – (O Deus em mim saúda o deus em ti) As mãos se juntaram em reverencia e a imagem do eremita nos acompanhou enquanto subíamos a escadaria.
A morte serena do Eremita de Rishkesh foi para mim um toque de consciência.
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sexta-feira, 29 de julho de 2011
segunda-feira, 18 de julho de 2011
FESTIVAL DE CHANDIGARH
Estamos rodando pelas estradas em direção ao estado de Punjab, considerado o celeiro da Índia. A paisagem vai se desenrolando pelas vidraças do ônibus cheio de turistas, juntamente com um filme indiano projetado na TV em frente. Os campos dessa região são férteis e a maioria da população é sikh. Aqui está localizado o famoso templo dourado onde os sikhs se refugiaram durante um conflito.
Fomos convidadas a apresentar nossos trabalhos de arte em Chandigarh, capital do Punjab, cidade projetada por Le Corbusier. Esse grande arquiteto francês trouxe uma forte contribuição do modernismo europeu para a Ásia. Senti a síntese oriente-ocidente de forma explícita no coração da Índia. Aos poucos a cidade foi se desvendando para nós como uma Brasília.
Os prédios se assemelham pois Le Corbusier foi a grande referência para Oscar Niemeyer. Nossa chegada já estava no programa do festival e o guia nos conduziu pelas ruas da cidade, mostrando os principais pontos de atração. Outros artistas vieram para o festival tais como Hari Prasad, considerado o maior flautista da Índia e o percussionista Zakir Hussain, um jovem tablista indiano que residia nos EUA. Girija Devi e orquestra também estavam na programação.
Ivana anotou em seu diário: “Cada frase musical era nova, surpreendente, num crescendo de ritmos, gemidos e sons de harpa. Vemos que tudo é criado na hora, improvisado como no jazz. Às vezes a cantora faz um gesto imperceptível para acelerar o ritmo, o tablista entende, tudo se acelera. Às vezes ele toma a frente, muda o ritmo, divide, cria, solta o corpo, os demais ouvem atentos, acompanham no fundo. Tentamos, de fora, entrar nesse mundo criado entre aquelas pessoas sentadas na mesma posição durante três horas. Conseguimos às vezes compreender um pouco, receber uma parcela de toda aquela energia.”
Aqueles músicos me recordaram o grupo UAKTI e os sons da flauta e percussão ainda podem ser escutados aqui no Brasil.
A música, arte do tempo, se prolonga pelo espaço e a Índia, separada geograficamente por muitos mares, está sempre presente em nossa casa: os sons realmente aproximam os povos.
A programação incluía música, artes plásticas, dança e teatro, recordando os nossos festivais de inverno. A melhor propaganda de um país é a divulgação de sua arte. A arte aproxima as pessoas, e foi cantando “London, London” de Caetano Veloso para uma multidão de 20 mil sikhs, que Ivana pôde apresentar o Brasil aos indianos. Naquele momento, ao ar livre, ela cantava para um mar de turbantes coloridos.
No dia seguinte era Carnaval na Índia e seguimos de carreta cantando marchinhas brasileiras e canções que lembravam a missão de levar a harmonia e paz ao mundo.
Nossa missão estava cumprida e no dia seguinte nos sentimos livres para visitar as obras de arte do Punjab e fotografar esculturas recobertas de cacos de vidro ou louça do Rock Garden que lembram a nossa conhecida “Casa de Cacos” de Contagem.
Realmente, cada vez mais, tomo consciência da interdependência ligando pessoas, natureza, idéias, sensações, sonhos. A nossa unidade com a natureza e o Universo vai se tornando cada vez mais uma realidade. Não somos separados, somos Um!
*Fotos de Maria Helena Andrés
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sexta-feira, 8 de julho de 2011
ORIENTE E OCIDENTE, FUSÃO DE CULTURAS
Quando pela primeira vez estive em Goa, senti-me como se estivesse no Brasil, em pleno coração da Índia. Ali estiveram os portugueses, deixando sua presença nas construções barrocas, na língua e nos costumes do povo. Nas aldeias goesas existe a tradição de se cantar serenatas, como em Diamantina.
Em Goa eu me sentia em casa. As pessoas são amáveis, acompanham os visitantes, convidam-nos para jantar, levam-nos aos concertos e recepções.
Fiquei conhecendo de perto a vida de uma aldeia goesa. O governo de Goa, naquela época, era socialista e a divisão de terras propiciava muitas desavenças. O sistema de castas, de origem hindu, prevalecia até nas famílias católicas.
O Dr. Antonio de Menezes, renomado historiador indiano, me contava a história de Goa e da Índia. Aprendi muito sobre a música indiana e a sua relação com o canto gregoriano dos cristãos, que se originaram de uma fonte comum. Ambos se expressam de forma circular, repetitiva, elevando as vibrações para um plano mais sutil. Todas as tardes, ele me ensinava um pouco da história de Goa e eu fazia a ponte com a história do Brasil. Através desse diálogo, soube que um dos maiores arquivos da história colonial do Brasil encontra-se em Panjim, a capital, merecendo, da parte dos brasileiros, um estudo mais aprofundado sobre esse assunto. Segundo o historiador, quando Afonso de Albuquerque chegou a Goa, encontrou o ensino elementar ministrado à sombra de árvores. Para efeito de maior expansão do Cristianismo e da cultura portuguesa, o conquistador português incentivou a criação de escolas para crianças e adultos. As cartilhas escolares vinham da metrópole e o ensino foi confiado aos religiosos.
A influência de Portugal na cultura goesa durou quatro séculos e meio, de 1510 a 1961. Ali foi criada a primeira imprensa do Oriente com o objetivo de expandir o Cristianismo e, ao mesmo tempo, divulgou a espiritualidade da Índia na Europa. Depois da retomada de Goa pelo governo da Índia, em 1961, os portugueses regressaram a Portugal e a ex-colônia perdeu o intercâmbio com o continente europeu.
As pessoas acima de 60 anos ainda falam o português, mas os jovens já perderam o contato com essa língua, desde que o governo da Índia decretou sua substituição pela língua local.
Quando o passado é lembrado, sua vibração nos chega intensa. Goa tornou-se a porta de entrada da Índia para o mundo ocidental, mas também foi palco de conflitos sangrentos como a Inquisição. Mas a paisagem redime o passado sangrento das batalhas e das mortes e a beleza das praias se impõe como uma benção, levando para longe os conceitos, as idéias e o fanatismo religioso. O mar assiste a tudo sereno, banhando de paz a costa indiana.
Goa desempenhou o papel de unificadora de duas civilizações. Navios chegavam da China, trazendo coisas fantásticas do Extremo-Oriente: louças chinesas, caixas, arcas de madeira e biombos trabalhados. O comércio intensificou a construção dos templos, promovendo a integração no campo das artes. Artesãos goeses que trabalhavam nas igrejas davam um cunho local à decoração. Os símbolos hindus eram substituídos por símbolos cristãos, mas a decoração e os arabescos conservavam as características orientais.
Muitas vezes, as igrejas cristãs erguiam-se nas ruínas das mesquitas e dos templos hindus, mas eram conservados detalhes da antiga construção. O historiador Antonio de Menezes nos ensinava que a arte de Goa deixou-se influenciar por motivos da arte hindu e muçulmana, integrando-se muito bem com a arquitetura barroca. Primeiro houve a fusão de raças, incentivada por Afonso de Albuquerque, depois a fusão e a combinação de vários estilos de arte. Nos entalhes feitos em teca, árvore da região, o rendado dos arabescos alcança um estilo próprio criado pelos famosos entalhadores de Goa.
As manifestações artísticas e os símbolos, transcendendo a palavra, captam de forma direta a integração dos diversos povos, fazendo sentir a sua origem comum, que é a origem do próprio ser humano sobre a terra. As ideologias separam os homens porque são conceitos mentais. A mente, de posse da verdade, resiste à invasão de seus domínios. Mas a Verdade é Una, Indivisível, e, acima de tudo, brilha, sem fronteiras, como o sol do meio dia, clareando a terra como um todo. Através da força energética da arte manuelina, os dois hemisférios conjugaram-se em gloriosa harmonia, antecipando o período do Barroco, renovador de conceitos antigos.
A influência da Índia sobre a arte portuguesa, por sua vez, veio ressoar no Brasil, alguns anos mais tarde, através do Barroco. Buscamos nossas origens, nossos pontos de semelhança com a Índia, como se pudéssemos reconstruir através dos dados históricos e das manifestações artísticas, religiosas e culturais, o Caminho das Índias, gerador de energia das grandes descobertas, da intensificação do comércio e do florescimento das artes.
*Fotos da internet
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