Dando continuidade ao artigo de Roberto Andrés, publicado na Revista Piauí, transcrevo o texto abaixo:
"A primeira viagem
internacional da artista foi em 1961, quando recebeu um convite para visitar
museus, galerias e escolas de arte nos EUA. O construtivismo ficava para trás e outras
tendências se disseminavam pelo mundo das artes. O professor do curso,
Theodorus Stamus, era um pesquisador da action painting – uma
pintura gestual, de movimentos fortes, que ficou muito conhecida pelo trabalho do
pintor Jackson Pollock.
Em seu diário dessa viagem, minha avó conta que fazia “frio abaixo de
zero” nas ruas, enquanto na escola ela se deparava com uma nova dimensão da
arte. Era também o período da Guerra Fria, e ela presenciou um treinamento de
guerra em Nova York. As sirenes tocavam e a população tinha que se esconder no
metrô. A fase gestual que desenvolveu em seguida tinha como tema a guerra. São
grandes pinturas e desenhos em preto e branco, carregados e expressivos – em
grande contraste com a organização e o lirismo da fase anterior. A mudança
expressa também aquelas ocorridas no Brasil: do entusiasmo modernizante dos
anos 1950 para a brutalidade da ditadura militar instalada a partir de 1964.
As mudanças de fase e a aposta em novas linguagens marcaram a trajetória
de Maria Helena Andrés. Foram oito décadas de produção artística em que, quando
uma abordagem começava a se estabelecer, ela a abandonava em prol de novos
experimentos. Alguns deram mais certo do que outros, como costuma acontecer. O
desapego aí presente era parte de uma postura geral – a artista doou inúmeros
trabalhos para familiares e amigos, trocou quadros importantes por passagens de
avião.
Com a morte precoce de seu marido, em 1977, Maria Helena intensificou
sua vocação viajante. Os filhos já estavam criados, e ela passou a buscar na
cultura oriental um alimento para o espírito, em um momento de trauma. A Índia
tornou-se sua segunda casa. Depois de passar um ano no país, em 1977,
acompanhando um filho que recebera uma bolsa de estudos, ela retornou catorze
vezes. Passava longas temporadas nos ashrams, envolvida em
meditações, seminários e processos de criação coletivos.
Nas minhas lembranças de infância, minha avó estava sempre chegando de
alguma viagem. E emanava o frescor de ideias de quem está em constante
movimento. Às vezes, chegavam também cartões postais e retratos de viagens.
Outro dia encontrei entre minhas caixas uma fotografia em que ela pilota uma
lambreta, com minha tia na garupa, nas ruas de Chandigarh, na Índia. Já era uma
sexagenária, mas expressava um ar vibrante e jovial na fotografia.
O tripé que sustentou a vida de Maria Helena talvez tenha sido a
dedicação à arte, à família e às viagens. Uma combinação que não se faz de
forma trivial. Nas últimas décadas, ela assumiu com mais centralidade o papel
de matriarca familiar. No Natal, presenteia com um desenho, pintura ou
escultura cada descendente. E não são poucos. Em seu aniversário de 96 anos,
ela cantou:
Noventa e seis,/ noventa e seis,/ hoje eu canto/
é para vocês,/ pros meus seis filhos,/ meus onze netos,/
canto também/ pros meus quinze bisnetos.
A abertura para as
novidades sempre foi uma característica da artista. Muitos querem saber suas
histórias antigas, e ela costuma contá-las com entusiasmo. Mas depois de um
tempo ela se cansa e migra para assuntos do presente. Quer entender as novas
expressões da arte, a cultura contemporânea, as tecnologias. Comprou
recentemente um iPad que, mesmo tendo alguma dificuldade no uso cotidiano,
carrega para todo lado. No início de 2022, aceitou a encomenda de um painel em
azulejo para a parede de uma igreja. Foi pedido que a artista representasse os
cinco milagres de Nossa Senhora. Depois de elaborar vários estudos, ela
pintou uma tela de formato médio, que servirá de base para a reprodução do
mural . E comentou em casa: “existe também o sexto milagre, que é eu fazer um
painel aos 99 anos.”
Maria Helena Andrés publicou livros, foi professora e diretora da Escola
Guignard, pintou e desenhou, expôs seus trabalhos mundo afora, teve momentos de
sucesso e outros de atuação mais discreta. Aos 95 anos, inaugurou uma exposição
de colagens, linguagem com a qual nunca havia trabalhado. Naquele mesmo ano,
ela cantou, em sua festa de aniversário:
Noventa e cinco,/ noventa e cinco,/ bota mais cinco/
pra ver o que vem./ Podem apostar,/ podem duvidar,/
estou achando/ que vou chegar aos cem.
No dia 2 de agosto de 2022, ela chegou de fato aos 100 anos. A
comemoração foi no sábado anterior, dia 30 de julho, com direito a missa,
cortejo musical e cantoria. A data a obrigou a mudar a fórmula dos versinhos,
nos quais ela celebrou também a passagem que se avizinha. Não é todo dia que
alguém homenageia a partida futura. Com um sorriso no rosto e após soprar as
velas do bolo, minha avó cantou assim:
Sou centenária,/ sou centenária./ Daqui a pouco serei
planetária/
Cantemos juntos pra celebrar/ Toda a beleza que a vida nos dá." (Roberto Andrés)
FOTOS DE ARQUIVO
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