sexta-feira, 14 de março de 2014


MEMÓRIAS DE GUERRA E PAZ

Pediram-me para publicar minhas memórias da primeira viagem internacional que fiz aos EUA em 1961, a convite do governo americano. Escolhi esta página do meu diário, porque coincide com o momento que estamos vivendo. A guerra e a paz sempre foram motivos que influenciaram artistas tais como Goya, Orosco, Picasso e Portinari. Também eu, na minha trajetória, denunciei a guerra nuclear no meu quadro “Radioative ship”, atualmente no museu da Pampulha.

“Quarta feira de cinzas, 1961:

Amanheci triste hoje. As saudades aumentaram cada dia. San Francisco é uma cidade alegre. Alegre e bonita, semelhante ao Rio. A mesma beleza natural, grande dote do Criador. Mas estou triste, apesar de tudo. Não sei porque, aconteceram tantas coisas esta semana! Logo de entrada, ainda bem não chegara ao aeroporto, os jornais anunciavam em grandes manchetes o foguete russo a caminho de Vênus. Fiquei muito entusiasmada, mas não encontrei ninguém para compartilhar do meu entusiasmo. Os americanos não estão muito felizes com a notícia... Bem, guardei para mim mesma o entusiasmo e me enfiei no quarto do hotel para ouvir notícias. Tenho um rádio que funciona bem e me distrai quando estou triste, toca músicas. Outro dia, escutei “Marina, Marina, Marina”: que saudades! Para escutar o rádio por 24 horas, tenho de colocar 25 cents no cofre lateral. Aqui tudo é pago. Se quero comprar selos, vou à máquina de vender. Ponho 5 cents e recebo 4; ponho 10 cents e recebo 8. No fim, a máquina vai me engolindo o cobre todo. Com estas taxas, constroem escolas e foguetes, o povo acha bem empregado, querem progredir. Mas, voltemos ao foguete russo. Anda a caminho de Vênus, será que lá tem gente? Se tiver, vai ser uma sensação a chegada do misterioso engenho terrestre. E para nós também será melhor, ficaremos mais unidos... Isto de guerra me apavora. Hoje, abri por acaso a gaveta da mesinha, havia um anúncio em letras enormes “Quando  as sirenes da Defesa Civil tocarem, aqui está o que fazer”.

1º alerta – contínuo, ininterrupto som de sirene por 4 minutos, significa ataque inimigo provável. Evacuar a cidade, sair imediatamente de onde estiver. Seguir o tráfego. Ir de automóvel.

2º ataque sem aviso – nenhum som de sirene. Um brilhante, luminoso foco, o mais brilhante que você já viu. Você terá apenas poucos minutos antes que o choque chegue. Deite-se debaixo da mais pesada peça de mobília, ou se não houver, deite-se no chão, a face voltada para a parede, longe da janela e dos vidros.

Continua uma série de medidas preventivas, inclusive depois de passado o ataque atômico. Se sair à rua, lavar logo o corpo, trocar de roupas e se livrar de tudo que possa estar exposto à radioatividade. Escutar o rádio para instruções, não ligar o telefone...
Este anúncio pôs-me pensativa e impressionada. Quanta coisa pode acontecer e eu aqui, sozinha! Lembrei-me de que San Francisco sofre terremotos, meu corpo se arrepiou. E, se aparecer um agora comigo, eu que desenhei tantos terremotos e explosões! Por falar em explosão, outra coisa veio perturbar meu sossego. A explosão do Boeing 707 na Bélgica foi algo de tremendo. Estava em N. York quando as patinadoras se exibiram no ringue, fazendo louco sucesso. Vi-as na televisão e agora, coitadas, estão mortas...

Sempre me senti tão segura no jato! Agora passarei a ter medo deles também. A situação tem sido de medo e tensão esta semana. Nunca me senti tão insegura, e agora logo que não tem nenhum brasileiro para trocar idéias. Estava no balcão de entrada, lambendo um selo, quando uma senhora me abordou: “A senhora é francesa?” “Não, sou brasileira e você?” “Russa de nascimento, mas americana naturalizada, casei-me com um americano. Quase dei-lhe os parabéns pelo foguete, mas talvez o dono do hotel me enforcasse, fiquei calada pensando. Tem um sorriso triste. Mora no hotel. Deve se sentir mal por ser russa morando na América...

*Fotos de arquivo e da internet

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