Pediram-me
para publicar minhas memórias da primeira viagem internacional que fiz aos EUA
em 1961, a convite do governo americano. Escolhi esta página do meu diário,
porque coincide com o momento que estamos vivendo. A guerra e a paz sempre
foram motivos que influenciaram artistas tais como Goya, Orosco, Picasso e
Portinari. Também eu, na minha trajetória, denunciei a guerra nuclear no meu quadro
“Radioative ship”, atualmente no museu da Pampulha.
“Quarta
feira de cinzas, 1961:
Amanheci triste hoje. As saudades aumentaram cada dia.
San Francisco é uma cidade alegre. Alegre e bonita, semelhante ao Rio. A mesma
beleza natural, grande dote do Criador. Mas estou triste, apesar de tudo. Não
sei porque, aconteceram tantas coisas esta semana! Logo de entrada, ainda bem
não chegara ao aeroporto, os jornais anunciavam em grandes manchetes o foguete
russo a caminho de Vênus. Fiquei muito entusiasmada, mas não encontrei ninguém
para compartilhar do meu entusiasmo. Os americanos não estão muito felizes com
a notícia... Bem, guardei para mim mesma o entusiasmo e me enfiei no quarto do
hotel para ouvir notícias. Tenho um rádio que funciona bem e me distrai quando
estou triste, toca músicas. Outro dia, escutei “Marina, Marina, Marina”: que
saudades! Para escutar o rádio por 24 horas, tenho de colocar 25 cents no cofre
lateral. Aqui tudo é pago. Se quero comprar selos, vou à máquina de vender.
Ponho 5 cents e recebo 4; ponho 10 cents e recebo 8. No fim, a máquina vai me
engolindo o cobre todo. Com estas taxas, constroem escolas e foguetes, o povo
acha bem empregado, querem progredir. Mas, voltemos ao foguete russo. Anda a
caminho de Vênus, será que lá tem gente? Se tiver, vai ser uma sensação a
chegada do misterioso engenho terrestre. E para nós também será melhor,
ficaremos mais unidos... Isto de guerra me apavora. Hoje, abri por acaso a
gaveta da mesinha, havia um anúncio em letras enormes “Quando as sirenes da Defesa Civil tocarem, aqui está
o que fazer”.
1º
alerta – contínuo, ininterrupto som de sirene por 4 minutos, significa ataque
inimigo provável. Evacuar a cidade, sair imediatamente de onde estiver. Seguir
o tráfego. Ir de automóvel.
2º
ataque sem aviso – nenhum som de sirene. Um brilhante, luminoso foco, o mais
brilhante que você já viu. Você terá apenas poucos minutos antes que o choque
chegue. Deite-se debaixo da mais pesada peça de mobília, ou se não houver,
deite-se no chão, a face voltada para a parede, longe da janela e dos vidros.
Continua uma série de medidas preventivas, inclusive
depois de passado o ataque atômico. Se sair à rua, lavar logo o corpo, trocar
de roupas e se livrar de tudo que possa estar exposto à radioatividade. Escutar
o rádio para instruções, não ligar o telefone...
Este anúncio pôs-me pensativa e impressionada. Quanta
coisa pode acontecer e eu aqui, sozinha! Lembrei-me de que San Francisco sofre
terremotos, meu corpo se arrepiou. E, se aparecer um agora comigo, eu que desenhei
tantos terremotos e explosões! Por falar em explosão, outra coisa veio
perturbar meu sossego. A explosão do Boeing 707 na Bélgica foi algo de
tremendo. Estava em N. York quando as patinadoras se exibiram no ringue,
fazendo louco sucesso. Vi-as na televisão e agora, coitadas, estão mortas...
Sempre me senti tão segura no jato! Agora passarei a
ter medo deles também. A situação tem sido de medo e tensão esta semana. Nunca
me senti tão insegura, e agora logo que não tem nenhum brasileiro para trocar idéias.
Estava no balcão de entrada, lambendo um selo, quando uma senhora me abordou:
“A senhora é francesa?” “Não, sou brasileira e você?” “Russa de nascimento, mas
americana naturalizada, casei-me com um americano. Quase dei-lhe os parabéns
pelo foguete, mas talvez o dono do hotel me enforcasse, fiquei calada pensando.
Tem um sorriso triste. Mora no hotel. Deve se sentir mal por ser russa morando
na América...
*Fotos de arquivo e da internet
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