(DIÁRIO DE VIAGEM,1967)
Andamos pelas ruas escuras de Veneza, do outro lado do canal. Minha filha Marília segue à frente, abrindo caminho por entre os becos cheios de lodo, que caracterizam a parte velha da cidade, moradia de famílias pobres. Informaram-nos sobre um museu onde poderíamos encontrar arte oriental, e para ele nos dirigimos. Ao contrário de Roma, os museus aqui são pouco visitados. Subimos uma escadaria de madeira e esperávamos encontrar um museu oriental com seus Budas de ouro, porcelana chinesa, etc. No entanto, logo à entrada, deparamo-nos com dois guardas enormes, vestidos de armaduras medievais, armados de lanças, escudos e capacetes. Sinto um arrepio. A presença do homem que estivera escondido sob a armadura é quase viva e ameaçadora. Um verdadeiro exército de guerreiros armados enfileira-se pelos quatros cantos da sala com um realismo tal que apavora o visitante.
Nossa visita ao museu oriental de Veneza começou por esta sala de armaduras medievais. A história dos povos antigos, suas invasões e lutas estão aqui presentes, num estranho impacto de violência e morte. Os olhos achinesados deste capacete de ferro parecem esconder a crueldade e a vingança. No meio das armaduras, outros olhos policiam nossos gestos. É um guarda vivo que nos acompanha. Encosto-me, sem querer, num dos escudos. Um objeto cai e os guerreiros, empunhando lanças, parecem avançar contra nós. Deixamos a sala dos cavaleiros medievais para descansar na finura da porcelana chinesa. O azul é a cor da paz, e a delicadeza dos vasos pintados nos redimem da agressividade das armaduras de ferro.
( DIÁRIO DE VIAGEM, 2000)
Quando a arte se estende à vida, ela se manifesta com a espontaneidade do canto dos pássaros. Dispensa curadores e intermediários e vai surgindo aqui e ali, sem intenção de ser arte. Surge para celebrar um momento único, uma alegria de viver, espontaneidade nunca repetida.
Estávamos em Veneza, após o encerramento a Bienal intitulada “Ética ou Estética”. Víamos os anúncios em todos os muros. Dentro da Bienal, curadores, marchands, artistas, disputaram prêmios e seleções. Do lado de fora, as gôndolas deslizavam nas águas, seguindo o ritual diário da cidade.
Tomamos um barco, Luciano, Ivana, Ida e eu. Naquele momento Luciano Luppi, neto de italianos, de pé no barco, assumiu a postura de diretor de teatro e diretor de orquestra e foi nos conduzindo pelas águas da cidade.
Há momentos na vida inesquecíveis e aquele deslizar de gôndola pelos canais de Veneza foi um deles. Luciano, não somente nos conduzia, mas também cantava com sua voz de tenor. Cantamos “Roberta”, “Io te amo solo te”, “Dio, como te amo” e “Santa Lucia”, marca registrada da Itália. Ali estávamos para participar de um coro imaginário de cancioneiros e gondoleiros. As janelas se abriam e as pessoas sorriam e acenavam. A cada manifestação de carinho, tomávamos coragem para cantar mais alto e mais bonito.
Naquele dia conseguimos alcançar um instante do maravilhoso. Como se fosse um prêmio dado pela própria vida.
(DEPOIMENTO DO PROFESSOR DR CID VELOSO SOBRE A 54 BIENAL DE VENEZA)
“Esta Bienal foi denominada ILLUMInations (Iluminações) um nome com duplo sentido: enfoque na luminosidade e menção ao Século das Luzes (século XVIII), no qual a Europa ocupou um papel cultural de destaque e a citação das inúmeras nações que participam do evento (89 países). O Brasil participou com apenas um artista, Artur Barrio, o qual, embora tenha nascido em Portugal, morou no Brasil grande parte de sua vida; Barrio apresentou uma instalação que contextualiza o período da ditadura militar brasileira e a violência atual, inclusive evento ocorrido em Belo Horizonte.
As obras foram expostas no Arsenale, no Giardini e em vários pontos da cidade, ocupando uma área de 10 mil m2.
As obras são de arte contemporânea, com ênfase multimídia: esculturas, pinturas, fotografias, instalações, audiovisuais, sons, cinema, luzes. Valeu a pena ver a Bienal, para sentir a capacidade humana de criar, refazer, reler, comunicar, protestar, denunciar, provocar, alertar, sonhar, fantasiar, antever. Contrastando com a arte contemporânea, estão três pinturas do pintor renascentista Tintoretto, com a menção de que era o pintor da luz.
*Fotos de Luciano Luppi, Ivana Andrés e Cid Veloso
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