quarta-feira, 19 de outubro de 2022

MHA,CENTENÁRIA DE IPAID III

 

 Dando continuidade ao artigo de Roberto Andrés, publicado na Revista Piauí, transcrevo o texto abaixo:

"A primeira viagem internacional da artista foi em 1961, quando recebeu um convite para visitar museus, galerias e escolas de arte nos EUA.  O construtivismo ficava para trás e outras tendências se disseminavam pelo mundo das artes. O professor do curso, Theodorus Stamus, era um pesquisador da action painting – uma pintura gestual, de movimentos fortes, que ficou muito conhecida pelo trabalho do pintor Jackson Pollock.

Em seu diário dessa viagem, minha avó conta que fazia “frio abaixo de zero” nas ruas, enquanto na escola ela se deparava com uma nova dimensão da arte. Era também o período da Guerra Fria, e ela presenciou um treinamento de guerra em Nova York. As sirenes tocavam e a população tinha que se esconder no metrô. A fase gestual que desenvolveu em seguida tinha como tema a guerra. São grandes pinturas e desenhos em preto e branco, carregados e expressivos – em grande contraste com a organização e o lirismo da fase anterior. A mudança expressa também aquelas ocorridas no Brasil: do entusiasmo modernizante dos anos 1950 para a brutalidade da ditadura militar instalada a partir de 1964.



 

As mudanças de fase e a aposta em novas linguagens marcaram a trajetória de Maria Helena Andrés. Foram oito décadas de produção artística em que, quando uma abordagem começava a se estabelecer, ela a abandonava em prol de novos experimentos. Alguns deram mais certo do que outros, como costuma acontecer. O desapego aí presente era parte de uma postura geral – a artista doou inúmeros trabalhos para familiares e amigos, trocou quadros importantes por passagens de avião.

Com a morte precoce de seu marido, em 1977, Maria Helena intensificou sua vocação viajante. Os filhos já estavam criados, e ela passou a buscar na cultura oriental um alimento para o espírito, em um momento de trauma. A Índia tornou-se sua segunda casa. Depois de passar um ano no país, em 1977, acompanhando um filho que recebera uma bolsa de estudos, ela retornou catorze vezes. Passava longas temporadas nos ashrams, envolvida em meditações, seminários e processos de criação coletivos.



Nas minhas lembranças de infância, minha avó estava sempre chegando de alguma viagem. E emanava o frescor de ideias de quem está em constante movimento. Às vezes, chegavam também cartões postais e retratos de viagens. Outro dia encontrei entre minhas caixas uma fotografia em que ela pilota uma lambreta, com minha tia na garupa, nas ruas de Chandigarh, na Índia. Já era uma sexagenária, mas expressava um ar vibrante e jovial na fotografia.

O tripé que sustentou a vida de Maria Helena talvez tenha sido a dedicação à arte, à família e às viagens. Uma combinação que não se faz de forma trivial. Nas últimas décadas, ela assumiu com mais centralidade o papel de matriarca familiar. No Natal, presenteia com um desenho, pintura ou escultura cada descendente. E não são poucos. Em seu aniversário de 96 anos, ela cantou:

Noventa e seis,/ noventa e seis,/ hoje eu canto/

é para vocês,/ pros meus seis filhos,/ meus onze netos,/

canto também/ pros meus quinze bisnetos.

 

A abertura para as novidades sempre foi uma característica da artista. Muitos querem saber suas histórias antigas, e ela costuma contá-las com entusiasmo. Mas depois de um tempo ela se cansa e migra para assuntos do presente. Quer entender as novas expressões da arte, a cultura contemporânea, as tecnologias. Comprou recentemente um iPad que, mesmo tendo alguma dificuldade no uso cotidiano, carrega para todo lado. No início de 2022, aceitou a encomenda de um painel em azulejo para a parede de uma igreja. Foi pedido que a artista representasse os cinco milagres de Nossa Senhora. Depois de elaborar vários estudos, ela pintou uma tela de formato médio, que servirá de base para a reprodução do mural . E comentou em casa: “existe também o sexto milagre, que é eu fazer um painel aos 99 anos.”

Maria Helena Andrés publicou livros, foi professora e diretora da Escola Guignard, pintou e desenhou, expôs seus trabalhos mundo afora, teve momentos de sucesso e outros de atuação mais discreta. Aos 95 anos, inaugurou uma exposição de colagens, linguagem com a qual nunca havia trabalhado. Naquele mesmo ano, ela cantou, em sua festa de aniversário:

Noventa e cinco,/ noventa e cinco,/ bota mais cinco/

pra ver o que vem./ Podem apostar,/ podem duvidar,/

estou achando/ que vou chegar aos cem.

 No dia 2 de agosto de 2022, ela chegou de fato aos 100 anos. A comemoração foi no sábado anterior, dia 30 de julho, com direito a missa, cortejo musical e cantoria. A data a obrigou a mudar a fórmula dos versinhos, nos quais ela celebrou também a passagem que se avizinha. Não é todo dia que alguém homenageia a partida futura. Com um sorriso no rosto e após soprar as velas do bolo, minha avó cantou assim:

Sou centenária,/ sou centenária./ Daqui a pouco serei planetária/

Cantemos juntos pra celebrar/ Toda a beleza que a vida nos dá." (Roberto Andrés)

 



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