quinta-feira, 10 de março de 2011

TIO DOUTOR

Minha irmã Lourdes me enviou o depoimento abaixo sobre o tio Doutor:

"No Velho Serro, as famílias determinavam o futuro dos filhos, assim que nasciam. O mais velho seria doutor e o segundo padre. Os outros trabalhariam nas fazendas, na mineração ou teriam emprego público.
João Ferreira de Salles era o irmão mais velho de minha avó. Por ser o mais velho, ficou conhecido e era chamado de Doutor. Dentro e fora da família. Por ironia do destino, veio a ser o único que não se formou. Nós, seus sobrinhos netos, o chamávamos de tio Doutor.
Feio, baixinho, vesgo, de olhos azuis, cabeça grande, esquentado e briguento. Tio Doutor era  o protetor dos filhos homens de vovó. Até meu irmão Paulo, que era seu sobrinho neto, fazia parte dos prediletos. Cheio de manias, vivia resmungando.
Seus pais haviam morrido cedo e deixado dez filhos órfãos.
 Tio Doutor ficou morando com meus avós, junto com suas irmãs Chiquinha e Doninha.
Ainda menina, me acostumei a vê-los no Rio, conversando e fumando cigarros de palha, hábitos que eles trouxeram do interior e não abandonaram. Esse meu tio avô  teve sempre seu quarto reservado em casa de vovó.
Era funcionário da polícia. Saia cedo de casa mal cumprimentava quem encontrasse.
Acomodava a dentadura com grande barulho, olhava em volta com seu olhar vesgo e ia para o trabalho. Tinha o hábito de reclamar de tudo e de todos. Freqüentava  roda de jogo em casa, quando toda a família tomava parte. Foi lá, na casa da rua Souza Lima, que ouvi contar varias vezes das aventuras dos irmãos Salles, entre elas uma história de tio Doutor passada no Serro, onde todos moravam.
Tio Doutor era mais de ouvir do que de contar. Quando necessário, fazia companhia aos sobrinhos, e tinha amigos fora da família. Mas era personagem de muitos casos.
Saia todas as noites para tomar uma cachacinha e discutir política com os amigos.
Numa destas discussões, não se sabe porque, armou encrenca com um coveiro da cidade. Uma briga feia, em que os dois briguentos se tornaram inimigos para o resto da vida. Apesar de tudo, como a cidade era muito pequena, encontravam-se com facilidade.
Sempre que se cruzavam, um mudava de calçada e resmungava desaforo por entre os dentes. A inimizade já durava muito tempo.
Começou a temporada fria no Serro. O vento cortante entrando até os ossos. Tio Doutor adoeceu. Febre alta, tremores e dores no corpo todo. Doutor Tolentino foi chamado (Era medico que atendia a cidade). Receitou os remédios da época, recomendou ficar de cama, mas a febre não passava. A gripe se transformou em pneumonia e o estado do tio Doutor se agravou .Suadouro para baixar a febre, ventosas nas costas (nunca eu soube para que). E a vigília dos irmãos por conta da doença prolongada.
Nas casas antigas do interior de Minas, os quartos tinham janelas dando para a rua.
 As pessoas passavam evitando fazer barulho para não incomodar o doente.
O coveiro soube do estado grave do paciente e resolveu provocá-lo.
O coveiro bateu na janela: - Estou te esperando....(Tio Doutor, com febre alta, não entendeu). O tratamento não dava resultado e o paciente continuou agonizando. No dia seguinte, repetiu-se a cena: o coveiro bateu na janela e gritou: -Estou à sua espera.
Tio Doutor entendeu vagamente, mas não teve forças para responder.
Sempre ao anoitecer, quando o coveiro terminava o serviço no cemitério, passava por lá e fazia a provocação. A família estava ficando indignada, solidária com o moribundo.
Depois de uma semana, uma voz alta gritou: -Como é ? Não vem? Está demorando muito...
Tio Doutor reagiu de maneira inesperada. Tirou forças ninguém soube de onde. Gritou meia hora. Suou tanto que trocaram de lençol três vezes. Deixou os acompanhantes assustados, porque saltou da cama e esbravejou sacudindo as cobertas e xingando o seu inimigo de todas as formas possíveis. Caiu na cama meio desmaiado, por causa do esforço, dormiu um dia inteiro e acordou completamente bom.
O frio continuou, o coveiro não passou mais, e mandaram celebrar uma missa em ação de graças pelo restabelecimento de tio Doutor.
Para quem é a missa? - perguntou o padre.
-É para João Ferreira de Salles.
-Não, responde ele, que estava perto. Este é o nome de meu pai e ele vai tomar a minha missa.E eu não quero ficar sem a missa.
-Como fazer?
- Põe missa para João Ferreira de Salles e diz: não é o pai, é o filho
- Se ninguém sabe o que acontece do lado de lá, é melhor eu garantir a minha missa
Tio Doutor ainda durou muitos anos. Viveu por muito tempo, sempre solidário com os sobrinhos homens. Morreu de ataque de uremia, muitos anos depois, no portão da casa de vovó na rua Sousa Lima, em Copacabana."

*Fotos da internet

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