Artista plástica, ex-aluna de Guignard. Maria Helena Andrés tem um currículo extenso como artista, escritora e educadora, com mais de 60 anos de produção e 7 livros publicados. Neste blog, colocará seus relatos de viagens, suas reflexões e vivências cotidianas.
terça-feira, 20 de março de 2018
O ÚLTIMO TOMBO EM PARIS
Do
outro lado da rua havia uma loja de flores. Já havíamos percorrido a cidade
toda atrás dessa loja e sempre a mesma resposta: “Não temos sementes à venda”.
A loja de flores em frente ao Sena vendia sementes de todas as qualidades.
Imaginei o Retiro das Pedras cheio de flores azuis, vermelhas, amarelas, vindas
da França....
Era preciso atravessar a rua para alcançar aquela loja. Hora do
rush, carros parados, sinal fechado para eles. Resolvemos atravessar a rua ali
mesmo, ente os carros parados, à espera do sinal verde. O caminho era estreito,
mas dava passagem para um de cada vez. Hesitei ao primeiro instante. “Será que
dou conta?” ”Vem, dá tempo”. As outras foram na frente, resolvi ir também.
Olhei para o outro lado da rua, naquele momento percebi que a rua era larga,
teria de andar depressa. Estava com um tênis novo, o numero acima do meu. Tênis
folgado não dá para andar depressa.
Fiquei
aflita, não vi a hora nem por quê. Tropecei e caí. Só me lembro de ver um carro
à minha frente com um para-choque enorme perto de minha cabeça, como uma
guilhotina. Do outro lado do Sena Maria Antonieta fora guilhotinada um dia. A
dor na testa me dizia que eu caíra de cabeça no asfalto, a dor no joelho
anunciava que a perna também sofrera.
Só tive tempo de buscar meus óculos que haviam sido jogados à altura das mãos,
no asfalto quente de Paris. A loja de flores estava em frente à nossa espera.
Fomos para lá. Sentei-me atordoada num banco que o dono da loja me deu. Solícito,
foi buscar água para eu beber. Eu estava em
estado de choque. Naquela hora, percebi a solidariedade dos franceses. “Deixa por
minha conta, nos disse o dono da loja, vou acessar o corpo de bombeiros.
“Minha
cabeça doía e, ainda atordoada com a queda, comecei a escutar as sirenes
tocando cada vez mais alto.. Os bombeiros estavam se aproximando.
Só
me lembro de vários olhos azuis me atendendo e mãos me enfaixando a perna
depois de derramar iodo. Lembrei-me da infância – todas as quedas eram curadas
com iodo. Os bombeiros fecharam a mala azul dos primeiros socorros, guardaram a
maca e me deram alta ali mesmo, na loja de flores. As sementes não foram
compradas, não havia clima para isso, mas o cheiro de flores e a solidariedade
daqueles franceses nunca serão esquecidos. Era o nosso último dia em Paris,
viajei para o Brasil com o joelho enfaixado e um galo na testa. Comprei arnica
C5 na farmácia em frente e fui tomando 3 glóbulos de hora em hora para evitar
hematomas futuros.
A
notícia de meu último tombo em Paris
circulou entre os amigos como um evento a mais no meu currículo. As pessoas tinham
sempre um caso para contar sobre tombos. “Meu pai caiu no banheiro quando
viajava e quarenta dias depois começou a
ficar esquisito, esquecendo tudo...Teve que ser operado na cabeça.
Fiquei
ciente dos sintomas: dor de cabeça alucinante, vômitos. Diante daquelas
referencias, eu também acordava com dor de cabeça e enjôo.
“Dor
de cabeça não tem importância, só se ela for de madrugada!... e era justamente
de madrugada que vinha a dor.
Fiquei
dias à frente do fogo, sem sair da minha casa no Retiro das Pedras, esperando a
tão temida “demência” resultante de choque na cabeça...Ainda faltava muito
tempo para terminar meu estado de observação. Falaram-me até em sessenta
dias... Perguntei a uma pessoa “Você está me achando esquisita?” ”Ora, você
sempre foi”.
Então
desisti de esperar e resolvi aceitar o convite do Artur para viajar com o grupo
UAKTI pelas montanhas do Rio: Teresópolis, Nova Friburgo e depois Rio de
Janeiro. Acompanhei os músicos, o grupo brilhou nas alturas, sob o maior frio
do ano – trazendo instantes de grande beleza para uma platéia jovem e
entusiasmada.
Nada
como um dia depois do outro, com eventos sucessivos, os positivos encobrem os
negativos. Fiquei boa sem tomar remédio, só substituindo as cenas no panorama
da vida.
*Fotos
da internet
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segunda-feira, 19 de março de 2018
segunda-feira, 12 de março de 2018
OS "SEM CARRO"
Enquanto
espero o ônibus, vou anotando num caderninho as vantagens dos “sem carro”. A espera
é um treino de paciência, enquanto esperamos podemos observar melhor o que nos
circunda.
Não
se paga estacionamento, nem faixa-azul, não se gasta gasolina nem se paga
motorista. Fica-se livre das terríveis multas, e também do sufoco do DETRAN com
filas enormes e milhares de pessoas falando ao mesmo tempo. “A senhora pode
passar na frente de todos, para pegar o papel.” Consegui pegar o papel mas não fiquei
livre daquela multidão falando ao mesmo tempo uma avalanche de vozes, um
sufoco...
Agora,
sentada num banco em frente ao colégio Coração de Jesus, posso observar de
perto o tráfego. Existem os sem terra, sem teto e “sem carro” – e esses últimos
levam vantagens.
Os
“sem carro” podem respirar melhor e observar os que passam dentro de veículos
andando sempre sentados pelas ruas da cidade. Estão sempre preocupados (
inclusive em serem assaltados pelos meninos nos sinais de trânsito).
Os “sem carro” observam as
coisas em volta, conhecem pessoas diferentes, vivem o agora com maior
intensidade. No momento, estou sentada num banco de espera de ônibus. Em minha
frente, do outro lado da calçada, existe uma casa antiga, tombada pelo
patrimônio e derrubada pelo tempo. Do outro lado da rua a casa também vê os
carros passando apressados, cada um com
seus problemas, enclausurados sobre quatro rodas. A casa tem uma varandinha
onde os namorados se encontravam e lá dentro outras estórias aconteciam. Deve
ter sido palco de muitos eventos, nascimentos, casamentos, enterros. Vou
imaginando a história daquela casa em frente ao Colégio Coração de Jesus. Deve
ter sido construída na década de 20 e lembra um pouco da casa da minha avó na rua Ceará, igualzinha a esta, de
frente para a rua, tinha até uma jaboticabeira no quintal. A vida naquela época
era mais calma, as crianças tinham tempo para brincar, hoje só pensam em
videogames, televisão, computadores e celulares. Os adultos não perdem as
novelas, as crianças e as empregadas também assistem. As redes sociais nos
celulares estão presentes o tempo todo. A casa em frente ao ponto de ônibus me
lembra os saraus de antigamente. As famílias se reuniam para ouvir um piano, ou
assistir a um teatrinho de crianças. Tios e primos batiam palmas e a glória
para a criança ficava em família. Já participei de vários eventos familiares,
liderados por uma tia muito criativa. Fizemos circo, cinema, dança, aulas de
criatividade incentivadas em casa, pelos próprios parentes. Todos os
aniversários eram festejados com números de dança, música, artes plásticas,
teatro. Fazíamos bonequinhas de papel crepom, casca de ovo com a carinha
pintada, muitas vezes com a cara dos parentes. Minha tendência para as artes plásticas
foi descoberta num desses saraus. Tinha quinze anos de idade, subi num banco e
desenhei a caricatura de todos os tios. Resultado: mandaram-me para o Rio de
Janeiro, estudar com o Chambelland –até que surgiu Guignard em Belo Horizonte.
E a coisa mudou. O academismo não era a minha linha, tive de desaprender para
começar de novo, retomando o fio da criatividade despertada na infância. Guignard
foi o mestre mágico dessa transformação.
De repente me dou conta que
estou sentada num banco público em frente ao Colégio Coração de Jesus.
Vivenciar com atenção o inesperado, o não programado, torna-se uma das formas
mais diretas de se aprender com a vida.
O
ônibus chega e me sento no banco da frente, um direito adquirido pelos maiores
de 65 anos. Continuo anotando:
O perfume chegou antes dela e sentou-se no meu
lado. Viajamos em silêncio por alguns minutos. A mulher do perfume vestia-se de forma exótica. De repente me
cutucou: “Oi, dona, você tem aí um real?” Olhei para ela : “Infelizmente não
posso atendê-la, estou sem troco, escolhi esse ônibus porque vou de graça, nós
duas estamos no mesmo barco! Viajar na frente do ônibus vermelho é só para os
velhos, gestantes e deficientes. Os jovens vão atrás.” Outro silêncio e depois
a voz de minha companheira de ônibus. “Que bom a gente ser velha, não se paga
ônibus!” Há vantagens em ser da Terceira Idade. Agora posso acrescentar às
vantagens dos “sem carro”, também as vantagens dos aposentados: não pagam
ônibus, têm desconto no cinema, preferência nas filas. Existem aulas de arte
para os velhos, serenatas, viagens, horas dançantes. Entrevistei no Rio um
senhor de idade, que trabalhou como engenheiro na fábrica Bangu e não tem
aposentadoria nem reclama do governo. Vive de uma pequena renda, os trocados de
algumas apólices, “uns trocados”, como ele diz. Mora num apartamento de quarto
e sala na Rua Domingos Ferreira, bem no coração do Leblon. Chegava da praia,
tostado de sol, cabelos brancos, agarrado
a uma prancha usada. Todos os
dias obedece ao mesmo programa de furar ondas, nadar para além da
arrebentação – boiar olhando as nuvens e o céu azul do Rio. Observa o brilho do
sol sobre as ondas e se familiariza com
os peixes em volta. Os peixes se aproximam, são seus amigos. Só come verduras e
frutas, prato de verão. À noite um copo de leite e pão, é o bastante. Seu hobby
é um trenzinho elétrico que vai armando todos os dias, com apitos, paradas,
estações, luzes. O passado do trem vai se transformando num brinquedo para
gente grande lembrar das antigas linhas de ferro brasileiras. Maria Fumaça
chegando, partindo, apitando. À noite, toca piano na mesma rua onde Vinícius de
Morais morou – toca num pequeno bar onde se reúnem pessoas para cantar. Todos
cantam.
Existe
um aprendizado para todas as faixas etárias, que não depende de livros. Ele
acontece a cada instante na vida de cada um de nós. É só nos colocarmos em
atitude receptiva.
*Fotos da internet
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segunda-feira, 5 de março de 2018
ARTE E ESPIRITUALIDADE
A partir dos anos 60 houve uma tomada de consciência
de que a arte seria a grande via de abertura espiritual. Os Beatles
influenciando os jovens com sua música, trouxeram para o Ocidente a filosofia
do Oriente.
A dança, num retorno às origens, reconquista o caminho do Sagrado.
As artes se integram em busca da Unidade Essencial. Ela se estende à vida, como
auxiliar da educação e da terapia, sobe as favelas, desce aos presídios,
penetra nos asilos de velhos, chega até as fábricas e empresas.
A previsão de Jean Cassou, o grande crítico de arte
europeu, de que a arte seria, na metade do século “qualquer coisa inteiramente
diferente do que pode ser para o homem nas diferentes etapas de sua
história”está se concretizando.
Estamos realmente assistindo a um grande trabalho de
recriação do ser humano, através do seu potencial criador, a um processo de
transformação que engloba o mundo todo em seu contexto, como se o Grande
Artista modelasse novamente o novo Adão.
Em 1979, na Índia, entrei em contato com Jean
Lebster, artista plástico e ecologista, que na ocasião ali realizava uma
experiência comunitária : uma síntese das artes plásticas com a psicologia,
tradições religiosas e ecologia. Anotei suas idéias e a ênfase dada ao fazer
artístico como crescimento espiritual.
Jean fazia questão de mostrar a ligação do ser
humano com o meio ambiente. Aliava ensinamentos teóricos de filosofia e
psicologia Junguiana à prática dos afazeres diários como forma artística de
viver.
“A jardinagem, dizia ele, é uma arte abençoada, que
traz a psique em comunhão direta com o espaço fenomenológico e regula o
metabolismo com o ritmo da Mãe Natureza. Os grandes sábios foram também grandes
jardineiros”.
Os tipos de arte como a culinária e a jardinagem,
dizia Jean, não podem ser considerados inferiores às outras em relação aos
resultados espirituais concedidos aos seus executantes”.
Os ensinamentos de Jean Lebster, valorizando as
atividades do cotidiano como formas de arte, estendem-se de forma harmoniosa ao
meio ambiente.
*Fotos da internet
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