terça-feira, 20 de março de 2018


O ÚLTIMO TOMBO EM PARIS


 Do outro lado da rua havia uma loja de flores. Já havíamos percorrido a cidade toda atrás dessa loja e sempre a mesma resposta: “Não temos sementes à venda”. A loja de flores em frente ao Sena vendia sementes de todas as qualidades. Imaginei o Retiro das Pedras cheio de flores azuis, vermelhas, amarelas, vindas da França....
 Era preciso atravessar a rua para alcançar aquela loja. Hora do rush, carros parados, sinal fechado para eles. Resolvemos atravessar a rua ali mesmo, ente os carros parados, à espera do sinal verde. O caminho era estreito, mas dava passagem para um de cada vez. Hesitei ao primeiro instante. “Será que dou conta?” ”Vem, dá tempo”. As outras foram na frente, resolvi ir também. Olhei para o outro lado da rua, naquele momento percebi que a rua era larga, teria de andar depressa. Estava com um tênis novo, o numero acima do meu. Tênis folgado não dá para andar depressa.

Fiquei aflita, não vi a hora nem por quê. Tropecei e caí. Só me lembro de ver um carro à minha frente com um para-choque enorme perto de minha cabeça, como uma guilhotina. Do outro lado do Sena Maria Antonieta fora guilhotinada um dia. A dor na testa me dizia que eu caíra de cabeça no asfalto, a dor no joelho anunciava que a perna também sofrera.
Só tive tempo de buscar meus óculos que haviam sido jogados à altura das mãos, no asfalto quente de Paris. A loja de flores estava em frente à nossa espera. Fomos para lá. Sentei-me atordoada num banco que o dono da loja me deu. Solícito, foi buscar água para eu beber. Eu estava em estado de choque. Naquela hora, percebi a solidariedade dos franceses. “Deixa por minha conta, nos disse o dono da loja, vou acessar o corpo de bombeiros.
“Minha cabeça doía e, ainda atordoada com a queda, comecei a escutar as sirenes tocando cada vez mais alto.. Os bombeiros estavam se aproximando.
Só me lembro de vários olhos azuis me atendendo e mãos me enfaixando a perna depois de derramar iodo. Lembrei-me da infância – todas as quedas eram curadas com iodo. Os bombeiros fecharam a mala azul dos primeiros socorros, guardaram a maca e me deram alta ali mesmo, na loja de flores. As sementes não foram compradas, não havia clima para isso, mas o cheiro de flores e a solidariedade daqueles franceses nunca serão esquecidos. Era o nosso último dia em Paris, viajei para o Brasil com o joelho enfaixado e um galo na testa. Comprei arnica C5 na farmácia em frente e fui tomando 3 glóbulos de hora em hora para evitar hematomas futuros.
A notícia de meu último  tombo em Paris circulou entre os amigos como um evento a mais no meu currículo. As pessoas tinham sempre um caso para contar sobre tombos. “Meu pai caiu no banheiro quando viajava e  quarenta dias depois começou a ficar esquisito, esquecendo tudo...Teve que ser operado na cabeça.
Fiquei ciente dos sintomas: dor de cabeça alucinante, vômitos. Diante daquelas referencias, eu também acordava com dor de cabeça e enjôo.
“Dor de cabeça não tem importância, só se ela for de madrugada!... e era justamente de madrugada que vinha a dor.
Fiquei dias à frente do fogo, sem sair da minha casa no Retiro das Pedras, esperando a tão temida “demência” resultante de choque na cabeça...Ainda faltava muito tempo para terminar meu estado de observação. Falaram-me até em sessenta dias... Perguntei a uma pessoa “Você está me achando esquisita?” ”Ora, você sempre foi”.
Então desisti de esperar e resolvi aceitar o convite do Artur para viajar com o grupo UAKTI pelas montanhas do Rio: Teresópolis, Nova Friburgo e depois Rio de Janeiro. Acompanhei os músicos, o grupo brilhou nas alturas, sob o maior frio do ano – trazendo instantes de grande beleza para uma platéia jovem e entusiasmada.
Nada como um dia depois do outro, com eventos sucessivos, os positivos encobrem os negativos. Fiquei boa sem tomar remédio, só substituindo as cenas no panorama da vida.

*Fotos da internet

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segunda-feira, 12 de março de 2018


OS "SEM CARRO"

Enquanto espero o ônibus, vou anotando num caderninho as vantagens dos “sem carro”. A espera é um treino de paciência, enquanto esperamos podemos observar melhor o que nos circunda.
Não se paga estacionamento, nem faixa-azul, não se gasta gasolina nem se paga motorista. Fica-se livre das terríveis multas, e também do sufoco do DETRAN com filas enormes e milhares de pessoas falando ao mesmo tempo. “A senhora pode passar na frente de todos, para pegar o papel.” Consegui pegar o papel mas não fiquei livre daquela multidão falando ao mesmo tempo uma avalanche de vozes, um sufoco...
Agora, sentada num banco em frente ao colégio Coração de Jesus, posso observar de perto o tráfego. Existem os sem terra, sem teto e “sem carro” – e esses últimos levam vantagens.
Os “sem carro” podem respirar melhor e observar os que passam dentro de veículos andando sempre sentados pelas ruas da cidade. Estão sempre preocupados ( inclusive em serem assaltados pelos meninos nos sinais de trânsito).
Os “sem carro” observam as coisas em volta, conhecem pessoas diferentes, vivem o agora com maior intensidade. No momento, estou sentada num banco de espera de ônibus. Em minha frente, do outro lado da calçada, existe uma casa antiga, tombada pelo patrimônio e derrubada pelo tempo. Do outro lado da rua a casa também vê os carros passando  apressados, cada um com seus problemas, enclausurados sobre quatro rodas. A casa tem uma varandinha onde os namorados se encontravam e lá dentro outras estórias aconteciam. Deve ter sido palco de muitos eventos, nascimentos, casamentos, enterros. Vou imaginando a história daquela casa em frente ao Colégio Coração de Jesus. Deve ter sido construída na década de 20 e lembra um pouco da casa da minha  avó na rua Ceará, igualzinha a esta, de frente para a rua, tinha até uma jaboticabeira no quintal. A vida naquela época era mais calma, as crianças tinham tempo para brincar, hoje só pensam em videogames, televisão, computadores e celulares. Os adultos não perdem as novelas, as crianças e as empregadas também assistem. As redes sociais nos celulares estão presentes o tempo todo. A casa em frente ao ponto de ônibus me lembra os saraus de antigamente. As famílias se reuniam para ouvir um piano, ou assistir a um teatrinho de crianças. Tios e primos batiam palmas e a glória para a criança ficava em família. Já participei de vários eventos familiares, liderados por uma tia muito criativa. Fizemos circo, cinema, dança, aulas de criatividade incentivadas em casa, pelos próprios parentes. Todos os aniversários eram festejados com números de dança, música, artes plásticas, teatro. Fazíamos bonequinhas de papel crepom, casca de ovo com a carinha pintada, muitas vezes com a cara dos parentes. Minha tendência para as artes plásticas foi descoberta num desses saraus. Tinha quinze anos de idade, subi num banco e desenhei a caricatura de todos os tios. Resultado: mandaram-me para o Rio de Janeiro, estudar com o Chambelland –até que surgiu Guignard em Belo Horizonte. E a coisa mudou. O academismo não era a minha linha, tive de desaprender para começar de novo, retomando o fio da criatividade despertada na infância. Guignard foi o mestre mágico dessa transformação.
De repente me dou conta que estou sentada num banco público em frente ao Colégio Coração de Jesus. Vivenciar com atenção o inesperado, o não programado, torna-se uma das formas mais diretas de se aprender com a vida.
O ônibus chega e me sento no banco da frente, um direito adquirido pelos maiores de 65 anos. Continuo anotando:
 O perfume chegou antes dela e sentou-se no meu lado. Viajamos em silêncio por alguns minutos. A mulher do perfume  vestia-se de forma exótica. De repente me cutucou: “Oi, dona, você tem aí um real?” Olhei para ela : “Infelizmente não posso atendê-la, estou sem troco, escolhi esse ônibus porque vou de graça, nós duas estamos no mesmo barco! Viajar na frente do ônibus vermelho é só para os velhos, gestantes e deficientes. Os jovens vão atrás.” Outro silêncio e depois a voz de minha companheira de ônibus. “Que bom a gente ser velha, não se paga ônibus!” Há vantagens em ser da Terceira Idade. Agora posso acrescentar às vantagens dos “sem carro”, também as vantagens dos aposentados: não pagam ônibus, têm desconto no cinema, preferência nas filas. Existem aulas de arte para os velhos, serenatas, viagens, horas dançantes. Entrevistei no Rio um senhor de idade, que trabalhou como engenheiro na fábrica Bangu e não tem aposentadoria nem reclama do governo. Vive de uma pequena renda, os trocados de algumas apólices, “uns trocados”, como ele diz. Mora num apartamento de quarto e sala na Rua Domingos Ferreira, bem no coração do Leblon. Chegava da praia, tostado de sol, cabelos brancos, agarrado  a uma prancha usada. Todos os  dias obedece ao mesmo programa de furar ondas, nadar para além da arrebentação – boiar olhando as nuvens e o céu azul do Rio. Observa o brilho do sol sobre as ondas e se familiariza  com os peixes em volta. Os peixes se aproximam, são seus amigos. Só come verduras e frutas, prato de verão. À noite um copo de leite e pão, é o bastante. Seu hobby é um trenzinho elétrico que vai armando todos os dias, com apitos, paradas, estações, luzes. O passado do trem vai se transformando num brinquedo para gente grande lembrar das antigas linhas de ferro brasileiras. Maria Fumaça chegando, partindo, apitando. À noite, toca piano na mesma rua onde Vinícius de Morais morou – toca num pequeno bar onde se reúnem pessoas para cantar. Todos cantam.
Existe um aprendizado para todas as faixas etárias, que não depende de livros. Ele acontece a cada instante na vida de cada um de nós. É só nos colocarmos em atitude receptiva.

*Fotos da internet

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segunda-feira, 5 de março de 2018


ARTE E ESPIRITUALIDADE


A partir dos anos 60 houve uma tomada de consciência de que a arte seria a grande via de abertura espiritual. Os Beatles influenciando os jovens com sua música, trouxeram para o Ocidente a filosofia do Oriente. 
A dança, num retorno às origens, reconquista o caminho do Sagrado. As artes se integram em busca da Unidade Essencial. Ela se estende à vida, como auxiliar da educação e da terapia, sobe as favelas, desce aos presídios, penetra nos asilos de velhos, chega até as fábricas e empresas.

A previsão de Jean Cassou, o grande crítico de arte europeu, de que a arte seria, na metade do século “qualquer coisa inteiramente diferente do que pode ser para o homem nas diferentes etapas de sua história”está se concretizando.

Estamos realmente assistindo a um grande trabalho de recriação do ser humano, através do seu potencial criador, a um processo de transformação que engloba o mundo todo em seu contexto, como se o Grande Artista modelasse novamente o novo Adão.

Em 1979, na Índia, entrei em contato com Jean Lebster, artista plástico e ecologista, que na ocasião ali realizava uma experiência comunitária : uma síntese das artes plásticas com a psicologia, tradições religiosas e ecologia. Anotei suas idéias e a ênfase dada ao fazer artístico como crescimento espiritual.

Jean fazia questão de mostrar a ligação do ser humano com o meio ambiente. Aliava ensinamentos teóricos de filosofia e psicologia Junguiana à prática dos afazeres diários como forma artística de viver.

“A jardinagem, dizia ele, é uma arte abençoada, que traz a psique em comunhão direta com o espaço fenomenológico e regula o metabolismo com o ritmo da Mãe Natureza. Os grandes sábios foram também grandes jardineiros”.

Os tipos de arte como a culinária e a jardinagem, dizia Jean, não podem ser considerados inferiores às outras em relação aos resultados espirituais concedidos aos seus executantes”.

Os ensinamentos de Jean Lebster, valorizando as atividades do cotidiano como formas de arte, estendem-se de forma harmoniosa ao meio ambiente.

*Fotos da internet

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