Enquanto
espero o ônibus, vou anotando num caderninho as vantagens dos “sem carro”. A espera
é um treino de paciência, enquanto esperamos podemos observar melhor o que nos
circunda.
Não
se paga estacionamento, nem faixa-azul, não se gasta gasolina nem se paga
motorista. Fica-se livre das terríveis multas, e também do sufoco do DETRAN com
filas enormes e milhares de pessoas falando ao mesmo tempo. “A senhora pode
passar na frente de todos, para pegar o papel.” Consegui pegar o papel mas não fiquei
livre daquela multidão falando ao mesmo tempo uma avalanche de vozes, um
sufoco...
Agora,
sentada num banco em frente ao colégio Coração de Jesus, posso observar de
perto o tráfego. Existem os sem terra, sem teto e “sem carro” – e esses últimos
levam vantagens.
Os
“sem carro” podem respirar melhor e observar os que passam dentro de veículos
andando sempre sentados pelas ruas da cidade. Estão sempre preocupados (
inclusive em serem assaltados pelos meninos nos sinais de trânsito).
Os “sem carro” observam as
coisas em volta, conhecem pessoas diferentes, vivem o agora com maior
intensidade. No momento, estou sentada num banco de espera de ônibus. Em minha
frente, do outro lado da calçada, existe uma casa antiga, tombada pelo
patrimônio e derrubada pelo tempo. Do outro lado da rua a casa também vê os
carros passando apressados, cada um com
seus problemas, enclausurados sobre quatro rodas. A casa tem uma varandinha
onde os namorados se encontravam e lá dentro outras estórias aconteciam. Deve
ter sido palco de muitos eventos, nascimentos, casamentos, enterros. Vou
imaginando a história daquela casa em frente ao Colégio Coração de Jesus. Deve
ter sido construída na década de 20 e lembra um pouco da casa da minha avó na rua Ceará, igualzinha a esta, de
frente para a rua, tinha até uma jaboticabeira no quintal. A vida naquela época
era mais calma, as crianças tinham tempo para brincar, hoje só pensam em
videogames, televisão, computadores e celulares. Os adultos não perdem as
novelas, as crianças e as empregadas também assistem. As redes sociais nos
celulares estão presentes o tempo todo. A casa em frente ao ponto de ônibus me
lembra os saraus de antigamente. As famílias se reuniam para ouvir um piano, ou
assistir a um teatrinho de crianças. Tios e primos batiam palmas e a glória
para a criança ficava em família. Já participei de vários eventos familiares,
liderados por uma tia muito criativa. Fizemos circo, cinema, dança, aulas de
criatividade incentivadas em casa, pelos próprios parentes. Todos os
aniversários eram festejados com números de dança, música, artes plásticas,
teatro. Fazíamos bonequinhas de papel crepom, casca de ovo com a carinha
pintada, muitas vezes com a cara dos parentes. Minha tendência para as artes plásticas
foi descoberta num desses saraus. Tinha quinze anos de idade, subi num banco e
desenhei a caricatura de todos os tios. Resultado: mandaram-me para o Rio de
Janeiro, estudar com o Chambelland –até que surgiu Guignard em Belo Horizonte.
E a coisa mudou. O academismo não era a minha linha, tive de desaprender para
começar de novo, retomando o fio da criatividade despertada na infância. Guignard
foi o mestre mágico dessa transformação.
De repente me dou conta que
estou sentada num banco público em frente ao Colégio Coração de Jesus.
Vivenciar com atenção o inesperado, o não programado, torna-se uma das formas
mais diretas de se aprender com a vida.
O
ônibus chega e me sento no banco da frente, um direito adquirido pelos maiores
de 65 anos. Continuo anotando:
O perfume chegou antes dela e sentou-se no meu
lado. Viajamos em silêncio por alguns minutos. A mulher do perfume vestia-se de forma exótica. De repente me
cutucou: “Oi, dona, você tem aí um real?” Olhei para ela : “Infelizmente não
posso atendê-la, estou sem troco, escolhi esse ônibus porque vou de graça, nós
duas estamos no mesmo barco! Viajar na frente do ônibus vermelho é só para os
velhos, gestantes e deficientes. Os jovens vão atrás.” Outro silêncio e depois
a voz de minha companheira de ônibus. “Que bom a gente ser velha, não se paga
ônibus!” Há vantagens em ser da Terceira Idade. Agora posso acrescentar às
vantagens dos “sem carro”, também as vantagens dos aposentados: não pagam
ônibus, têm desconto no cinema, preferência nas filas. Existem aulas de arte
para os velhos, serenatas, viagens, horas dançantes. Entrevistei no Rio um
senhor de idade, que trabalhou como engenheiro na fábrica Bangu e não tem
aposentadoria nem reclama do governo. Vive de uma pequena renda, os trocados de
algumas apólices, “uns trocados”, como ele diz. Mora num apartamento de quarto
e sala na Rua Domingos Ferreira, bem no coração do Leblon. Chegava da praia,
tostado de sol, cabelos brancos, agarrado
a uma prancha usada. Todos os
dias obedece ao mesmo programa de furar ondas, nadar para além da
arrebentação – boiar olhando as nuvens e o céu azul do Rio. Observa o brilho do
sol sobre as ondas e se familiariza com
os peixes em volta. Os peixes se aproximam, são seus amigos. Só come verduras e
frutas, prato de verão. À noite um copo de leite e pão, é o bastante. Seu hobby
é um trenzinho elétrico que vai armando todos os dias, com apitos, paradas,
estações, luzes. O passado do trem vai se transformando num brinquedo para
gente grande lembrar das antigas linhas de ferro brasileiras. Maria Fumaça
chegando, partindo, apitando. À noite, toca piano na mesma rua onde Vinícius de
Morais morou – toca num pequeno bar onde se reúnem pessoas para cantar. Todos
cantam.
Existe
um aprendizado para todas as faixas etárias, que não depende de livros. Ele
acontece a cada instante na vida de cada um de nós. É só nos colocarmos em
atitude receptiva.
*Fotos da internet
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