segunda-feira, 27 de maio de 2019


UM RETIRO NOS HIMALAIAS - CONCLUSÃO


As palavras de Krishnamurti ressoam nos meus ouvidos. A natureza toda está nascendo e morrendo a cada instante. O inspirar e o expirar é um constante nascer e morrer. O passarinho está cantando alegremente em cima da árvore, as penas são de um azul fosforescente. Cada nota nasce e morre instantaneamente, sem apego.
Por que nos apegamos às coisas?
Por que tentamos segurar aquilo que nos deu prazer e tentamos repetir o momento passado?
As águas do rio continuam seu movimento. As pedras maiores no meio da correnteza criam ondas, circulares ao redor, mas o rio continua fluindo para a frente. A vida é esta correnteza que um dia se lançará no mar, os apegos criam ondas, movimentos circulares às vezes violentos, mas o rio continua o seu percurso apesar de tudo.

O que é o apego?
Para mim é querer segurar o que pertence ao todo, colocar dentro de um compartimento o passado com suas experiências. Procuro tentar morrer para essas experiências passadas, morrer para as coisas conquistadas, morrer para as crenças e as coisas ensinadas, morrer para os afetos, morrer para as ambições e desejos, morrer para as frustrações, ansiedades e medos, morrer para a culpabilidade, morrer para as emoções. Tudo passa como o rio e a correnteza vai jogando as pedras menores nas margens, as maiores criam ondas, mas não seguram o rio. O Ganges hoje tem águas avermelhadas porque desceu muita terra das montanhas.

“Quando se vê a vida holisticamente, então a morte, a vida, a agonia, o desespero, a solidão e o sofrimento são um único momento. Quando se vê holisticamente, então existe total liberdade da morte. Há a liberdade do medo de não ser capaz de continuar.”
“Quando entendemos que a vida e a morte são uma coisa só – então você está vivendo lado a lado com a morte, que é a coisa mais extraordinária a se fazer; não existe nem passado, nem presente, nem futuro, existe apenas o acabar.”

Conversas com Ramola, o diretor do Instituto:
“Ramola, o que é, o que é?”
“O que é, é o que é”, respondeu.
“Maria, esta é uma brincadeira espiritual.”
“Devido à nossa incapacidade de lidar com o que é, buscamos o que deveria ser.”
“O que é, é o único fato.”

Hoje subimos a montanha de patamares buscando concentração no agora. Ver, ouvir, sentir o caminho, sem objetivo nem pressa de chegar. As pessoas param e nos cumprimentam: “Namaste”(o Deus em mim saúda o Deus em ti).
A floresta de pinheiros é protetora e sentamos no alto para contemplar o que é: perdemos o caminho, mas este também é lindo. Mais alto, mais cansativo, mas cheio de irrigações e pedras. Seguimos até a fonte de onde jorra a água para a aldeia. Caminhar sem pressa, sem desejo de chegar é sempre uma surpresa. E para nós o que é, é esta nova caminhada, sem o objetivo de encontrar o mesmo caminho de ontem. O caminho de ontem foi belo, por que repeti-lo? Através dos desvios aprendemos, chegamos à nascente das águas.

Os nossos erros nos conduzem à compreensão de nós mesmos. Se seguíssemos o que deveria ser, estaríamos tentando repetir a experiência e a vida perderia a alegria da descoberta.

À tarde sentamos nas esteiras para escutar música gregoriana. O escutar é importante e exige atenção no “agora”. A música, sendo a arte do tempo exige a percepção de vários “agoras”.

Depois discutimos sobre “o que é”. Lembrei de um texto da Bíblia, quando Moisés escutou a voz de Deus. “Eu sou Aquele que É”. Este texto sempre foi difícil de ser compreendido através da mente. Só agora, vivenciando os ensinamentos de Krishnamurti, posso compreender este texto da Bíblia. “Aquele que é”, é Deus ou o que nós chamamos de Deus. O Imensurável, o Eterno. Não podemos respirar ontem nem amanhã, não podemos amar ontem nem amanhã, não podemos nos tocar ontem ou amanhã, não podemos comer ontem nem amanhã.

Se encontramos Deus totalmente, quando o vivenciamos no “Agora”, o resto é memória ou projeção da mente. 
Sentir Deus com o corpo todo, percebê-lo na unidade das estrelas com a terra, nas montanhas, nos mares, nos rios.

A energia divina não se perde nas névoas do passado, nem nas fantasias do futuro. Ela está aqui, neste instante, enquanto escuto o rio passando embaixo, enquanto percebo o frio dos Himalaias tocando o meu rosto.

Meditar é estar presente, e esta presença se faz agora, ou nunca.

Conversamos com Ramola sobre os diversos instrutores. “É uma forma de entorpecer a mente”. Só existe “o que é”. O resto é um desvio no caminho.
Não seriam estes ensinamentos, a forma de nos levar diretamente à vivencia do “que é”, sem fantasias?
Dependência é prisão, nunca irá nos libertar.
A nossa comunhão com o universo se faz no “Agora”.
Hoje, pela madrugada, afastei a cortina e, pela vidraça, pude perceber a estrela “Venus”, brilhando muito, como em muitos anos atrás contatei minha estrela.
Ela brilhou intensamente para depois se ocultar atrás das nuvens.

A neve dos Himalaias
Desceu sobre a terra
Em forma de chuva
E o gelo se derreteu
E se liquefez.
A água dos Himalaias
Nos banhou
E como o rio
Carregou as memórias
Do passado.
Neste momento
Somos este rio que passa
E não pára.
Segue o caminho
Sem olhar para trás.
Lavando as pedras
Banhando as encostas.
A chuva dos Himalaias
Desceu sobre nós
Durante cinco dias
E cinco noites.
O silêncio também
Baixou como uma benção
Lavando o cansaço
Das viagens.
No quinto dia
O sol resplandeceu
E brilhou desde cedo
Anunciando um novo dia.

Iremos deixar o recanto, hoje às 10 horas. Ontem à noite, diante de uma lareira acesa, escutamos música (Órgão de Sunil, grande músico indiano), ecoar nas montanhas geladas, com a ressonância dos mares do Sul.
A presença de Sunil, o músico de Pondicherry, se manteve suavemente, no silêncio da sala, enquanto o fogo da lareira consumia a madeira.
Contemplamos o fogo, desde que ele nos apareceu como um dragão vomitando chamas, até que as chamas se transformaram em diamantes reluzentes nas sombras da sala. Depois, as cinzas nos fizeram lembrar que nada se perde, tudo se transforma. As cinzas de Krishnamurti estão espalhadas neste recanto e a beleza da terra agradece.
(Trecho de meu diário de viagem, 1990)

*Fotos da internet

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segunda-feira, 20 de maio de 2019


UM RETIRO NOS HIMALAIAS – PRINCÍPIO DE VIDA


Estamos na primavera. Sobre a terra molhada, o sol começa a surgir. Surge também, dentro de mim, um novo sol. Lembro-me da experiência que tive quando li Krishnamurti pela primeira vez. Comprei um livrinho no aeroporto, estava a caminho de Brasília, que eu iria visitar  pela primeira vez em 1973. 17 anos se passaram. Li o livro durante a viagem e continuei lendo a noite toda até de madrugada. Quando acabei de ler, o sol nascia, muito vermelho, enorme. Surgia para sempre, um novo sol dentro de mim.

Krishnamurti nos desperta para sermos nossos próprios mestres e nossos próprios discípulos. Dispensa todas as seitas e gurus. O trabalho conosco não é num consultório de análise. É a própria vida nos ensinando, momento por momento.
“O problema deve ser percebido quando está acontecendo, não antes nem depois, como memória ou como um exemplo. A percepção é instantânea; você entende uma coisa instantaneamente ou nunca: o ver, o escutar, o entender são instantâneos”.
Neste momento estou vendo, escutando e sentindo o perfume da primavera. Daqui a alguns instantes esta percepção se torna apenas memória e outra surgirá num novo momento.

A memória é produto da mente, e nos depósitos do inconsciente procuramos ressurgir o que já morreu. Mas nunca ele nascerá novamente com a mesma intensidade. Morte e vida são um único movimento. A cada instante nascemos e morremos.
“A percepção só pode nascer do silêncio e não da mente falante”.
Somente uma mente quieta pode perceber os movimentos exteriores e interiores, o que se passa fora e dentro de nós ao mesmo tempo.

O movimento da mão escrevendo, o quarto com duas camas, livros espalhados, o sol entrando pela janela, pássaros cantando lá fora, o jardineiro abrindo canteiros. O dia se torna cada vez mais claro e com a presença do sol, o panorama externo vai mudando momento por momento. Também internamente, a nossa paisagem muda.
“Estarmos conscientes de nossa desatenção é de grande importância, não existe método para se estar atento o tempo todo. A prática de estar atento é desatenção”.
Subimos o morro para ver a paisagem. Há uma floresta de pinheiros bem no alto e para chegar até lá, passamos por casebres de camponeses, sempre curiosos da nossa presença. Trazem cadeiras para a gente sentar e as crianças nos olham com admiração. As camponesas carregam potes dourados sobre as cabeças e nas orelhas, brincos que refulgem ao sol.

As mulheres na Índia, desde criança, vão guardando dinheiro para comprar joias que serão dadas como dote quando os pais encontram um marido para as filhas. Se não tiverem dote, não se casam. Tiramos fotos em frente às casas, junto às vaquinhas. Nossa caminhada continuou morro acima, vendo os campos de trigo lá embaixo, como os quadros de Van Gogh. De lá pudemos ver nossas cabanas espalhadas pelo retiro, cada uma guardando uma presença. Cada um de nós descobriu o seu pinheiro, na dimensão certa de sua própria vida. Abracei um deles certa de que era o meu e, quando olhei para cima ele se desdobrava em muitos galhos. O de Marília Paleta subia sozinho em direção aos céus.

“ A morte é parte da vida. Pode-se viver com a morte e entender o significado do fim?”
“Morrer para nossos apegos, nossas crenças”.
Todas essas são frases de Krishnamurti.
(Trecho de meu diário de viagem, 1990)

*Fotos da internet

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domingo, 12 de maio de 2019


UM RETIRO NOS HIMALAIAS – MOMENTOS POÉTICOS


Patamares verdes
Onde cresce o trigo
E o arroz.
Patamares subindo a montanha
Que se eleva aos céus.
Patamares verdes
Exuberantes, cheios de luz.
Desce a madrugada
E o dia nasce.
Germinam sementes
O verde se estende
Em seu manto de paz.
Patamares verdes .
No meio dos campos
Crescem girassóis.

Há uma pedra negra
Como o Pão de Açúcar
Em frente ao meu quarto.
Contemplo esta pedra,
Vejo Machu Pichu.
Há pedras brancas, cinzentas, negras,
Contando histórias do passado.
Na Índia as pedras fálicas são adoradas
Como o pênis de Shiva
Fecundando a Terra.
A energia dos opostos
Masculina e feminina
Está contida nestas imagens
Do princípio da vida.

No meio da chuva
O sol brilhou de repente
E todas as pedras
Brilharam também.
Foi só um instante
De meditação
Um momento de luz
No meio da névoa
Que de mansinho
Cai descendo sobre os campos.

As águas geladas dos Himalaias
Estão descendo sobre a terra.
As águas geladas fecundam
Os campos penetrando fundo
Nas encostas e nos vales.
O povo se recolhe
Volta-se para dentro
Em meditação.

Depois de longa viagem, percorrendo cidades, conhecendo gente, chegamos ao ponto alto da viagem. Lugar de repouso, escolhido por Krishnamurti para meditação e recolhimento interior. Aqui a meditação se faz naturalmente, sem horário, sem imposições externas, sem cânticos.
A chuva nos obrigou a ficar parados, olhando os campos pela vidraça. Só saímos de nossa cabana para as refeições que são feitas em outra cabana. A alegria de estarmos juntos neste momento é mais importante do que tudo. (Trecho de meu diário de viagem, 1990)

*Fotos da internet

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terça-feira, 7 de maio de 2019


UM RETIRO NOS HIMALAIAS - VIA SACRA


 A chuva está, de certo modo nos mostrando o lugar onde devemos ficar para reflexão. Depois de meses de viagem, aqui repousamos no silêncio das montanhas. Realmente, tudo foi necessário para completarmos nossa via sacra. Estamos na época da quaresma, conscientizando o caminho percorrido onde poderemos encontrar todas as figuras das cenas da Via – Sacra de Cristo.

Maria, a mãe, foi a jovem Gurumai logo ao início da viagem. Sob a guarda da energia Shakti, conduzidos por ela, seguimos caminho, enfrentando todas as dificuldades necessárias para a caminhada, desde o calor excessivo do sul da Índia, ao frio intensivo dos Himalaias.

Percorremos a trilha dos devotos e dos “jnanas”, sempre conscientes de que , para se realizar a totalidade é importante conhecer tudo, para depois fazer a entrega de todos os conhecimentos e experiências.

É necessário o Deus Interno, o Self, encontrado no silêncio do ser, para depois também entregá-lo na redenção final.

É preciso sofrimento, paciência, desapego, atenção total.

Aqui estamos prontos para a entrega final, que seria a morte do passado, não apenas intelectualmente, mas vivencialmente. Não apenas numa experiência mística, induzida por um momento de êxtase, mas a consciência de que a vida é, para qualquer ser humano, uma Via Sacra. Os passos da Paixão são nossos passos, a condenação, o julgamento, a cruz sobre os ombros percorrendo o caminho, o encontro com as mulheres (energia feminina) a ajuda de Cirineu (energia masculina), a queda (os obstáculos), novamente a retomada para o encontro no alto da montanha. Neste momento, teremos de fazer nossa entrega total.

Estamos conscientes disto, o passado precisa morrer para que haja ressurreição.

(Trecho de meu diário de viagem, 1990)

*Fotos da internet

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