segunda-feira, 15 de dezembro de 2014


O GURU

 Perto de Rajgath existe um vilarejo. Fomos visitá-lo depois do jantar acompanhando aquela americana alta que está no Krishnamurti Foundation. Ela só aparece nas horas das refeições, quase não assiste aos vídeos – sai misteriosamente para a aldeia. Tem um jovem amigo lá.
Tivemos de usar lanterna pois a estrada era escura, cheia de buracos; passamos por uma ponte de madeira sobre um rio, até chegarmos à aldeia. Não se enxergava nada, a escuridão da noite, cercava o ambiente de mistério. A ponte era estreita e vários ciclistas queriam passar carregando enormes vasilhas de leite. Só conseguíamos distinguir na escuridão as lanternas das bicicletas, nada mais. Acompanhamos a americana de quase dois metros de altura, ela era a nossa segurança. Guiou-nos até um templo iluminado onde uma multidão de devotos cantava.
Retratos de gurus sorrindo dentro de molduras em forma de flores, um teatro de marionetes por todos os lados. Fizeram-nos sentar no chão, junto a um grupo de mulheres, depois me levaram a um aglomerado de homens, crianças, mulheres. Tentei enxergar o que acontecia colocando-me na ponta dos pés. Um indiano alto percebeu a minha curiosidade, abriu alas no grupo para que eu pudesse ver de frente.
Ali estava sentado, em pose de meditação um homem de meia idade, coberto de guirlandas de flores. Os devotos se ajoelhavam diante dele beijando-lhe os pés. “Curve-se diante dele”, disse-me o homem alto atrás de mim. Hesitei, a postura crítica de uma ocidental veio à tona, mas a força da tradição, a inocência e a devoção dos fiéis quebrou a minha barreira. Curvei-me diante dele como todos os outros e senti que era isto que deveria fazer naquele momento.
Voltamos novamente ao nosso cottage no Krishnamurti Foundation. Paramos num barzinho pobre, construção de bambu, recoberto de folhas de palmeiras. Jovens camponeses da região assistiam a um programa de TV.
Voltei sem saber o nome daquele guru, ficou na lembrança a postura devota dos indianos.
Krishnamurti recusava qualquer ato de reverência. Ele nunca se julgou um guru, nem aceitou ser o Cristo do futuro conforme os teosofistas esperavam. Sua missão foi de abrir a consciência das pessoas, e fazê-las perceber a vida por elas mesmas, sem apoios externos. “Seja seu próprio mestre”, nos dizia ele em suas palestras. Tendo estudado por muito tempo o pensamento de Krishnamurti, através de seus livros “Liberte-se do passado”, “A primeira e a última liberdade” e vários outros, eu pude percorrer a Índia sem me envolver com nenhuma tradição religiosa.

*Fotos da internet


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segunda-feira, 1 de dezembro de 2014


KRISHNAMURTI FOUNDATION VARANASI

  
Viemos para este lugar maravilhoso, um oásis no meio da confusão de Benares. Estamos alojadas num cotage, com uma varanda dando para um bosque. Lá embaixo o rio Ganges continua trazendo as memórias dos conflitos das cidades e banhando de paz as encostas, as praias e as diversas “Gates” onde os devotos de banham. Em suas águas deposito as experiências, sejam elas boas ou más. O presente só me fala de paz, compaixão, amor. Lembro-me do Dalai Lama – “os nossos inimigos são os nossos maiores amigos, pois nos trazem problemas” e, sem problemas não podemos crescer.
Os problemas de Benares me trouxeram a Ragport, onde está situada a sede do K.T.
Aqui a vivência do agora é tranquila, cheia de beleza. Aqui é o ponto de encontro de viajantes, daqueles que caminham sozinhos, não pertencem a organizações. Vêm de todas as partes do mundo. Krisnamurti foi realmente o mestre internacional. Para ele não existia fronteiras; viajava do Oriente para o Ocidente espalhando sua mensagem. Derrubava as divisões que separam os homens. “You are the world”, dizia. Não existe separatividade entre o observador e a coisa observada. Se entrarmos em união com o canto dos pássaros, com o verde da natureza, o rolar das águas, o barulho das cidades, a massa humana passando nas ruas nas horas do “rush” nos sentimos parte deste todo como participantes incógnitos da música coletiva.

Uma indiana simpática nos recebeu. Chegamos cheias de malas e pacotes. Contei o episódio do macaco e a decisão rápida de vir para aqui.
Krisnamurti sempre tem sido o meu refúgio nas longas viagens. Ele foi o primeiro que teve a coragem de romper com todos os “ismos”. Em 1974, comprei um livro de Krisnamurti “A Primeira e Última Liberdade”. Achei-o no aeroporto de Belo Horizonte e fui lendo o livro sem para até Brasília. Continuei lendo pela madrugada até o dia amanhecer. Quando o sol foi surgindo rompendo as névoas da madrugada abri a janela do quarto. Minha cabeça mudara, a minha percepção sensorial aumentara.
A partir desse dia a minha ligação com Krisnamurti se manifesta de forma independente, sem pertencer a nenhum grupo, mas sempre encontrando por acaso os meus irmãos espirituais, seja no Brasil ou na Índia. Eles me recebem com a maior cordialidade. As portas se abrem, as divisões não existem. Nossa chegada a Rajgath, a permanência neste cottage todo pintado de cores claras, com uma varanda de onde escrevo ou desenho, o silêncio do bosque somente cortado pela música da natureza, o vento, os pássaros cantando, as trepadeiras, os vasos de flores e um pavão tranquilamente circulando por entre as árvores, tudo isto constitui no momento o meu oásis. Aqui tenho possibilidade de estar só e refletir.

*Fotos da internet

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terça-feira, 18 de novembro de 2014


O BARQUEIRO E O MACACO

 O barqueiro nos conduziu pelas ruas estreitas de Benares. Era magro, enrolado num manto vermelho – “Com a chuva não tem passagem para vocês irem até lá...” Apontou o templo, as luzinhas já brilhavam no meio da névoa. Chovera muito e as ruas estavam alagadas. Tentamos chegar até a escola de sânscrito, mas a água chegara até os degraus da escada. Agora o barqueiro descrevia em inglês oficial, entrecortado de palavras da língua local. “Não tem passagem” vão deslizar na escada – “Só de barco.”.
Descemos com dificuldade para não escorregar. Lá embaixo as águas do rio Ganges traziam memórias de cerimônias, cremações, flores amareladas jogadas nos rituais, pedaços de carcaças que envolvem os defuntos. “Não entre no barco!” ele pode afundar, eu posso tropeçar... Lembrei dos dólares guardados na cintura. O caminho até o barco era estreito, depois aquela água cheia de coisas, resíduos, nem sei de quê. O barqueiro insistiu “Mama, não tem perigo, eu seguro seu braço!” – “Não, quando voltarmos já estará escuro.” Desisti de ir – Preferi subir de novo as escadarias, entrar pelos becos escuros, seguir a trilha dos devotos. Entramos num templo, cerimônia de puja, lá dentro as luzes brilhavam em cada nicho: incenso, velas, sinos tocando. A noite nesses templos antigos de mais de dois mil anos é impressionante. Velhos vestidos de alaranjado tocam sinos, rodeiam o templo, cantam mantras. O som dos sinos atravessa todos os labirintos do ouvido, estremece o corpo, retorna a alma para um passado remoto. Chocalhos, sinos reverenciam os deuses.
Benares nos remete ao passado, mas também de maneira às vezes violenta, nos traz de volta ao presente.
O presente é aquele falso brâmane cantando mantras, colocando flores no pescoço dos estrangeiros, propiciando um momento de encantamento para depois exigir dinheiro, comercializando os momentos de devoção. “A corrupção do ótimo é o péssimo” já dizia meu marido. Agora estou vendo pela própria experiência o ótimo se transformar em péssimo. O episódio do macaco culminou com a nossa vinda para a Fundação Krishnamurti  numa decisão irrevogável. Estava exausta, queria descansar, a experiência dos falsos brâmanes me deu consciência do outro lado de Benares, aquele que explora os turistas incautos.

Quando subia as escadarias que levam a um templo junto ao Ganges, senti dor no peito, um sentimento de pesar bateu fundo dentro de mim. Não consegui seguir o caminho, parei junto a uma loja de discos, vídeos, perfumes, pós de sândalo, cassetes. “Não consigo subir, vou parar aqui!”. O jovem comerciante ofereceu-me chá, colocou uma música relaxante, tratou-me com o carinho de um filho. Estava tão exausta que não podia mais dar um passo. A lojinha parecia um templo e o comerciante era um ser humano com a mente compassiva. “A senhora pode ficar, não vou exigir dinheiro...”
O contraste entre os falsos samurais e a compaixão do jovem comerciante me ajudou a respirar melhor. Mas, as experiências não terminaram. Neste mesmo dia, caí na escada do hotel, fui descansar em meu quarto. Dormi algum tempo, mas acordei com um barulho na janela. A cortina mexia e uma cara preta começou a surgir devagarinho pela fresta. De súbito um imenso macaco pulou no meu quarto. Havia uma bandeja com frutas e o macaco cobiçava as minhas bananas. Fiquei um instante paralisada, depois gritei com todas as forças do meu peito. “Help me, a monkey in my room!” O macaco olhou para mim com os olhinhos miúdos. De corpo inteiro com uma enorme cauda, parecia um monstro. “Help me”, gritava eu. Naquele momento eu precisava fugir mas não sabia onde estava a chave do quarto. “Help me!” Aterrorizada a minha voz ressoava pelo hotel. “There’s a monkey here!” O macaco parou e arrepiou inteirinho. Olhou para mim assustado e desistiu de roubar as bananas. Pulou pela janela, de volta aos terraços de onde viera. Os empregados do hotel vieram me ajudar, o dono do hotel se desculpou dizendo que era a segunda vez em treze anos que um macaco entrava num quarto.
Eu não quis saber de nada, nem mais um dia aqui! (Trecho de diário de Viagem à Índia)

*Fotos da internet

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