segunda-feira, 21 de março de 2016


VIAGEM AOS EUA - Treino de guerra


Relato de uma experiência nos EUA em 1961.

 Isto de guerra me apavora. Hoje, abri por acaso a gaveta da mesinha, havia um anúncio em letras enormes “Quando as sirenes da Defesa Civil tocarem, aqui está o que fazer”.

1º alerta – contínuo, ininterrupto som de sirene por 4 minutos, significa ataque inimigo provável. Evacuar a cidade, sair imediatamente de onde estiver. Seguir o tráfego. Ir de automóvel.

2º ataque sem aviso – nenhum som de sirene. Um brilhante, luminoso foco, o mais brilhante que você já viu. Você terá apenas poucos minutos antes que o choque chegue. Deite-se debaixo da mais pesada peça de mobília, ou se não houver, deite-se no chão, a face voltada para a parede, longe da janela e dos vidros.

Continua uma série de medidas preventivas, inclusive depois de passado o ataque atômico. Se sair à rua, lavar logo o corpo, trocar de roupas e se livrar de tudo que possa estar exposto à radioatividade. Escutar o rádio para instruções, não ligar o telefone...
Este anúncio pôs-me pensativa e impressionada. Quanta coisa pode acontecer e eu aqui, sozinha! Lembrei-me de que San Francisco sofre terremotos, meu corpo se arrepiou. E, se aparecer um agora comigo, eu que desenhei tantos terremotos e explosões! Por falar em explosão, outra coisa veio perturbar meu sossego. A explosão do Boeing 707 na Bélgica foi algo de tremendo. Estava em N. York quando as patinadoras se exibiram no ringue, fazendo louco sucesso. Vi-as na televisão e agora, coitadas, estão mortas...

Sempre me senti tão segura no jato! Agora passarei a ter medo deles também. A situação tem sido de medo e tensão esta semana.
Este é o primeiro treino de guerra a que assisto. Estou no quarto fazendo as malas. Colocar as coisas em ordem para a viagem final é mais difícil do que se pensa. Falta espaço, excede o peso. Estes pequenos problemas absorvem-me por completo. Nem escuto o rádio ligado. Há muito tempo que estão falando, falando. De repente, uma frase mais clara soa aos meus ouvidos. “Quando as sirenes tocarem, procurem os abrigos”. Ordem do presidente Kennedy em Washington. A Baía de Porcos tinha sido cercada por ele e o presidente russo avisou que poderi fazer uma retaliação tendo Nova York como alvo. Fico parada escutando. Um arrepio corre-me pelo corpo, lembro-me daquele anúncio de S. Francisco. Antes que eu possa pegar o telefone e indagar na portaria, as sirenes já estão tocando, tocam insistentes, sonoras, como um longo gemido. Da janela, posso ver as ruas em baixo. A cidade movimentada de N. York está em completo suspense. Ninguém se mexe. O povo se comprime à entrada dos subways, em baixo dos toldos. Há alguém querendo tomar um táxi e os guardas impedem. A imobilização tem de ser geral, ordem vinda de Washington. O rádio parou também, apenas a angústia da espera, e esta sirene, tocando, tocando…
                   Não agüento ficar sozinha no meu quarto. Subo correndo as escadas para o 7o andar, onde mora o casal de brasileiros. Lá estão eles à janela, espiando. Não estão assustados, sabem que é apenas um treino de guerra. Depois de meia hora, a cidade se movimenta novamente. A vida volta ao ritmo normal e eu desço para acabar minhas arrumações. Graças a Deus, já estou me preparando para voltar! …
*Fotos de arquivo
VISITE TAMBÉM MEU OUTRO BLOG “MINHA VIDA DE ARTISTA”, CUJO LINK ESTÁ NESTA PÁGINA








terça-feira, 15 de março de 2016


VIAGEM AOS EUA IV

 Trecho do meu diário de viagem aos EUA em 1961:
Greenwich village – NY
Greenwich Village é o bairro existencialista de N. York. Copiam o Montmartre de Paris. Lá se vêem homens barbados e mulheres de longos cabelos, literatos e artistas se misturam à boemia da cidade. À tarde, depois do lanche, a praça está cheia. Estudantes levam sanduíches para comer na grama, fazem da imensa Washington Square um enorme pátio de recreio. Sentam-se ao longo dos bancos circulares, discutem problemas, estudam. Vi um estudante  atentamente lendo alguma coisa ao meu lado, e tomando notas. “Introdução à Filosofia”. É lá que fica a Universidade de N. York. Lá também os artistas costumam alugar ateliers para trabalhar durante o dia. Reúnem-se à noite no Cedar Bar, junto à Universidade, para trocar ideias e beber. Há artistas que vêm de longe para participar do ambiente de inspiração que o Village lhes dá. Percorro a Washington Square, pensando como podem as opiniões serem tão diferentes. Prefiro uma quadra mais autêntica da imensa Washington Square. Há uma cerca para separar as crianças dos grandes. Os grandes lá estão, mostrando a “pinta” de gente diferente. As crianças não os vêem, brincam inocentes no cercado de areia. Sujam as carinhas, constroem castelos. Cabelos ruivos, narizinhos sardentos, como são lindas as crianças americanas! Aquele pequenino acabou de comer areia, a mãe vem socorrê-lo correndo. A mãe é pintora e minha colega na Art Students League. Será que estas crianças, quando crescerem, vão ser também existencialistas?  Bato uns slides da turma de guris, da miniatura do Arco do Triunfo, do povo sentado lendo.
James Brooks
Marcaram-me um appointment com Mr. James Brooks. Mr. Brooks é o autor da célebre frase que citei no meu trabalho sobre arte.
“A superfície da tela é o ponto de encontro daquilo que o pintor conhece, com o desconhecido que ali aparece pela primeira vez.”
É um dos melhores artistas americanos, e tem atelier neste bairro modesto e pobre de N. York. Tomo um táxi para não ter de atravessar a pé as ruas. Há bêbados e homens discutindo, e eu prefiro parar exato onde preciso descer. Mr. Brooks espera-me às 3 horas. Foi avisado da minha visita. Às 3 horas em ponto, estou tocando a campainha de baixo. O Studio fica no 3o andar. “- Are you Mrs. Andrés?”. Mr. Brooks está à minha frente, leva-me por aquelas escadas enormes até seu atelier. Nunca vi um Studio tão grande! Há quadros empilhados nas paredes, painéis enormes, e os últimos desenhos sobre a mesa. Mr. Brooks mostra-me tudo, pergunta sobre o Brasil, interessa-se por minha exposição. Gosto de conhecer artistas, de ver de perto como trabalham. É melhor e mais interessante do que ver os quadros dependurados no museu. Oferece-me café feito por ele, na hora, conta um pouco do movimento artístico de N. York. “- Sou do Texas, mas há muito moro aqui. New York é o centro para onde convergem artistas vindos às vezes de todas as partes do mundo”. Os artistas do leste e oeste americano têm um estilo completamente diferente. Notei isto nas minhas viagens. Aqui em N. York predomina a escola de Pollock, Hoffman, De Koonnig, Stamos e Brooks. São violentos, expressivos, completamente informais. James Brooks pertence à categoria dos informais, suas fases são firmes e conscientes e há uma certa unidade entre elas. Todo o itinerário de sua pintura está aí nos quadros que me mostra. Este itinerário será publicado em livro brevemente. Mr. Brooks é polido com as senhoras, como todo americano. Desce comigo as escadas, leva-me até o ponto mais próximo de ônibus. “Vou levá-la até a Broadway, não convém que ande sozinha por aqui”.
*Fotos da internet
VISITE TAMBÉM MEU OUTRO BLOG “MINHA VIDA DE ARTISTA”, CUJO LINK ESTÁ NESTA PÁGINA











segunda-feira, 7 de março de 2016


VIAGEM AOS EUA III

Transcrevo aqui trecho de um diário de viagem aos EUA em 1961.
Hoje fiquei muito feliz. Vendi um desenho em Seattle. Recebi aviso de Mrs. Duzanne. Estava eufórica com a rapidez com que o quadro foi vendido. No mesmo domingo que saí de lá ele foi vendido. Escreveu-me contando. Estava escutando o rádio, quando entraram dois casais na galeria. Vieram ver outra exposição. Sentaram-se e começaram a folhear os catálogos em cima da mesa. Interessaram-se especialmente por um vindo do Brasil. Um dos casais havia recentemente feito uma viagem ao Brasil. Mrs. Duzanne foi buscar meus desenhos. Interessaram-se por um denominado “Boats” – “But, it is just like Brasil. ”. disseram. Compraram o desenho. Mrs. Duzanne ficou admirada com a rapidez. Escreveu-me, mandou-me o cheque de 65 dólares. Ficou com 35 para ela, o desenho foi vendido por 100 dólares, sem moldura, nem nada. Imagine, um desenho, 20 mil cruzeiros..., mas a alegria maior tive com aquela pequena frase: “It is just like Brasil! ”. Representa a pátria ser parecido com ela; não pode haver maior alegria para uma brasileira…
Vou comprar selo na portaria do hotel e lá eu encontro com Mr. John Pogzeba. Mr. Pogzeba é conservador do museu. Nasceu na Polônia, mas reside há muitos anos nos EUA. Está me cumprimentando sorridente – “Vi seus desenhos, gostei muito. Você quer me vender um?  Não é para mim, é para o museu. Estive pensando em comprar quadros de três artistas brasileiros. Você será um deles…”. Santa Fé, New México, é a cidade mais artística dos EUA. Cada pedra da rua respira arte. E para mim seria muito agradável figurar num museu de Santa Fé. Estou interessada na venda. “- Os desenhos estão com Mrs. Martin, quando eles chegarem o senhor poderá escolher o que mais lhe agrada. ”
         Mr. Maussy vem trazer meus desenhos. Estou com a pasta na mão, escutando o que ele me diz. Mr. Maussy é o meu responsável aqui e um dos diretores do museu. Está me convidando para expor lá. “- Será muito interessante para nós ter uma exposição de artista brasileira. Seus desenhos precisam ser vistos aqui…”. Estou meio pasma com tantas solicitações. Primeiro, o conservador querendo me comprar um para o museu. Agora, o diretor me oferecendo a sala para expor. “ – Nós lhe remeteremos direto para o Brasil, se não puder vir na ocasião… faremos tudo, a senhora não terá despesa alguma…”
Corcoran Gallery
A Corcoran Gallery tem duas correntes de arte. Uma acadêmica e outra moderna. Mr. Forsytle é o professor moderno. Tem um processo de ensino todo pessoal, e está me mostrando alguns slides de sua coleção. Mostra-me trabalhos de alunos e eu vou separando alguns para levar para o Brasil. Ensina na Corcoran, no meio de acadêmicos, deve lutar contra a corrente, aí. Por isso mesmo, procura aperfeiçoar seus processos de ensino. Conto-lhe sobre Sister Madalena, e seu ensino ultramoderno de arte. “- A senhora é de sorte! Correr tantos museus e escolas, ver tantas coisas! Sou americano e ainda não tive esta oportunidade”. Mr. Forsytle dá-me endereços em N. York. Conhece gente lá, já expôs também em Green Village. Agora é professor da escola mais tradicional de Washington. Lá, ensinaram os acadêmicos, em tempos passados, e ainda ensinam, até hoje. Corri a escola, vi os trabalhos. Há professores que ensinam aquele processo antigo de Chambelland e Oswaldo Teixeira! No meio deles, impondo, com a força renovadora de uma arte nova, está o jovem professor Charles Forsytle. Usa colagem, fotos, diversos meios de procurar inspiração. Das fotografias o aluno tira apenas os planos, transformando-os em elementos abstratos. Bom exercício de composição e combinação de cores. Há também aquele processo de se jogar tintas sobre o papel, deixando as cores escorrerem. O aluno repete o exercício umas 50 vezes. No final, o resultado deve ser bom. Não há o perigo de se viciar, de se ficar preso a um ensino tradicional. Não sei se Mr. Forsytle dá aulas para principiantes. Seu método deve ser bom para aqueles que já têm algum treino de desenho. Com uma disciplina de branco e preto e uma segurança preliminar, o aluno naturalmente compreenderá melhor esta liberdade de improvisar, e deixar que o acaso colabore na sua criação artística.
*Fotos da internet
VISITE TAMBÉM MEU OUTRO BLOG “MINHA VIDA DE ARTISTA”, CUJO LINK ESTÁ NESTA PÁGINA










quinta-feira, 3 de março de 2016


VIAGEM AOS EUA II

Na minha viagem aos EUA em 1961, conheci Mrs. Phillips, que se tornou minha amiga. Transcrevo abaixo trecho do meu diário da época, com foto do nosso encontro em Washington.
Mrs. Phillips escreveu-me gentilmente um cartão. Marcou-me um appointment a que não posso faltar. Encontro marcado na Pan American Union às 3 e meia da tarde. Espero-a no lobby. Ando de um lado para outro, imaginando como seria a famosa lady. Não a conheço pessoalmente, sei que deve ter uns 55 anos e pinta. Tem a melhor galeria de arte dos Estados Unidos, a Phillips Collection. Finalmente chegam, Mrs. Phillips veio com o marido. Já o conheço daquela vez que lá estive. Vamos até o local da exposição. Mrs. Phillips mostra-se entusiasmada com os desenhos, compra um para sua coleção. Para mim, isto é uma grande vitória. Mrs. Phillips coleciona quadros de artistas famosos, ter um desenho na sua coleção significa muito para um artista. Saio feliz da Pan American Union com o casal Phillips, com o fato de estar presente na melhor galeria de Arte dos EUA. A Phillips sempre foi a minha galeria preferida. Sempre admirei o gosto que tem no arranjo dos quadros, nas luzes, na escolha dos trabalhos. Estou contente no meio deles. O carro sai conosco da União Pan Americana. O chauffeur nos cobre as pernas com uma manta de lã, Mr. Phillips está ao meu lado. Conversamos sobre arte. A estrada é linda, leva-nos além de Georgetown à mansão dos Phillips. Entro meio sem jeito naquele palácio. Vem um mordomo abrir as portas, dois cachorros de raça nos recebem festivamente. Já me acostumei à presença de cachorros dentro de casa. Eles percebem que sou amiga, chegam perto de mim, aliso-lhes o pelo. Já não tenho medo. Sei que não mordem, são educados. A casa é uma imensa galeria de arte. Às vezes, trocam os quadros, o Salão Grande agora está cheio de Bonnards. Levanto-me para ver de perto. Quadros de Rouault, Braque, Picasso, Puvis de Chavannes. Nunca havia visto antes um Puvis de Chavannes ao natural, apenas por reprodução. Admirei-me das cores suaves que emprega. Há um imenso Bonnard em tons de rosa, uma praça de Paris em plena neve. A neve é cor-de-rosa, o céu é cor-de-rosa. Quase não me foi possível engolir o chá. Estava tão surpresa, que ele fazia barulho na garganta ao descer, gole por gole. Mr. Phillips indagou muito sobre o Brasil. Tive de escrever o nome de Guignard para ele. Talvez se lembre de comprar um para sua coleção… Mrs. Phillips é discreta, fala pouco, mas muito simpática. Mostrou-me um dos seus quadros em cima da lareira, um grande painel representando uma paisagem de montanhas. Mrs. Phillips gosta de pintar paisagens. Também, a casa é rodeada de paisagens belíssimas. Fica situada no alto, com os gramados cercando árvores plantadas sobre a grama. Ao longe, enxerga-se a paisagem de Washington. Demoro-me olhando a vista. Como deve ser bom pintar dentro de um cenário tão deslumbrante e convidativo! … O chauffeur vem me trazer em casa. Pelo caminho, indaga sobre minha terra. Está curioso por saber notícias do Brasil. Conhece o Rio de fama e Brasília de postais.
Phillips Collection
Esta é uma galeria em que os quadros podem ser realmente contemplados. É por isso que todo o mundo entra devagarinho, pisando nas pontas dos pés. Entram com o respeito com que entram numa igreja, conversam baixinho, para não perturbar a paz e a poesia que flui de cada quadro. Sento-me horas em frente ao Bonnard da sala de cima, representando uma menina com o cachorro. Interessa a poesia daquele vermelho, único toque luminoso no centro do quadro. Bonnard não é o meu artista preferido, mas essa menina de vermelho tem alguma coisa de diferente e inédito. Na sala de Rouault há uma figura estranha sentada na minha poltrona. Na poltrona verde, de veludo, onde costumo me assentar. A figura parece de cera, está imóvel. Sentou-se debaixo de um quadro, a luz ilumina-lhe o rosto, também. Deve ter uns 18 anos e é de uma palidez impressionante. Só o rosto iluminado, cabelos pretos, blusa preta, calça preta… Está olhando horas seguidas o mesmo quadro que eu também admiro, “O Cristo com o soldado”. Peço lápis ao porteiro para tomar notas, e subo para ver a salinha de Klee. Depois desço, venho escolher postais de quadros. Talvez seja a última vez que estou entrando na Phillips Collection, preciso reunir alguns cartões. Escolho os que mais me agradam e vou ao porteiro. O porteiro é um velhinho simpático. Está sempre naquela mesa de entrada, treinando taquigrafia. Trabalha há muito tempo para o Mr. Phillips. Já me viu tantas vezes entrar e sair que meu rosto lhe é familiar. “- A senhora é a artista que veio do Brasil? Não vou lhe cobrar os cartões, leve-os de presente…”
*Fotos de arquivo e da internet

VISITE TAMBÉM MEU OUTRO BLOG “MINHA VIDA DE ARTISTA”, CUJO LINK ESTÁ NESTA PÁGINA