Artista plástica, ex-aluna de Guignard. Maria Helena Andrés tem um currículo extenso como artista, escritora e educadora, com mais de 60 anos de produção e 7 livros publicados. Neste blog, colocará seus relatos de viagens, suas reflexões e vivências cotidianas.
segunda-feira, 21 de março de 2016
VIAGEM AOS EUA - Treino de guerra
Relato de uma experiência nos EUA em
1961.
Isto de guerra me apavora. Hoje, abri por
acaso a gaveta da mesinha, havia um anúncio em letras enormes “Quando as
sirenes da Defesa Civil tocarem, aqui está o que fazer”.
1º
alerta – contínuo, ininterrupto som de sirene por 4 minutos, significa ataque
inimigo provável. Evacuar a cidade, sair imediatamente de onde estiver. Seguir
o tráfego. Ir de automóvel.
2º
ataque sem aviso – nenhum som de sirene. Um brilhante, luminoso foco, o mais
brilhante que você já viu. Você terá apenas poucos minutos antes que o choque
chegue. Deite-se debaixo da mais pesada peça de mobília, ou se não houver,
deite-se no chão, a face voltada para a parede, longe da janela e dos vidros.
Continua uma série de medidas preventivas, inclusive
depois de passado o ataque atômico. Se sair à rua, lavar logo o corpo, trocar
de roupas e se livrar de tudo que possa estar exposto à radioatividade. Escutar
o rádio para instruções, não ligar o telefone...
Este anúncio pôs-me pensativa e impressionada. Quanta
coisa pode acontecer e eu aqui, sozinha! Lembrei-me de que San Francisco sofre
terremotos, meu corpo se arrepiou. E, se aparecer um agora comigo, eu que
desenhei tantos terremotos e explosões! Por falar em explosão, outra coisa veio
perturbar meu sossego. A explosão do Boeing 707 na Bélgica foi algo de
tremendo. Estava em N. York quando as patinadoras se exibiram no ringue,
fazendo louco sucesso. Vi-as na televisão e agora, coitadas, estão mortas...
Sempre me senti tão segura no jato!
Agora passarei a ter medo deles também. A situação tem sido de medo e tensão
esta semana.
Este é o primeiro treino de guerra a que assisto.
Estou no quarto fazendo as malas. Colocar as coisas em ordem para a viagem
final é mais difícil do que se pensa. Falta espaço, excede o peso. Estes
pequenos problemas absorvem-me por completo. Nem escuto o rádio ligado. Há
muito tempo que estão falando, falando. De repente, uma frase mais clara soa
aos meus ouvidos. “Quando as sirenes tocarem, procurem os abrigos”. Ordem do
presidente Kennedy em Washington. A Baía de Porcos tinha sido cercada por ele e
o presidente russo avisou que poderi fazer uma retaliação tendo Nova York como
alvo. Fico parada escutando. Um arrepio corre-me pelo corpo, lembro-me daquele
anúncio de S. Francisco. Antes que eu possa pegar o telefone e indagar na
portaria, as sirenes já estão tocando, tocam insistentes, sonoras, como um
longo gemido. Da janela, posso ver as ruas em baixo. A cidade movimentada de N.
York está em completo suspense. Ninguém se mexe. O povo se comprime à entrada
dos subways, em baixo dos toldos. Há alguém querendo tomar um táxi e os guardas
impedem. A imobilização tem de ser geral, ordem vinda de Washington. O rádio
parou também, apenas a angústia da espera, e esta sirene, tocando, tocando…
Não
agüento ficar sozinha no meu quarto. Subo correndo as escadas para o 7o
andar, onde mora o casal de brasileiros. Lá estão eles à janela, espiando. Não
estão assustados, sabem que é apenas um treino de guerra. Depois de meia hora,
a cidade se movimenta novamente. A vida volta ao ritmo normal e eu desço para
acabar minhas arrumações. Graças a Deus, já estou me preparando para voltar! …
*Fotos de arquivo
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terça-feira, 15 de março de 2016
VIAGEM AOS EUA IV
Trecho do meu diário de viagem aos EUA em 1961:
Greenwich village – NY
Greenwich Village é o bairro existencialista de N.
York. Copiam o Montmartre de Paris. Lá se vêem homens barbados e mulheres de
longos cabelos, literatos e artistas se misturam à boemia da cidade. À tarde,
depois do lanche, a praça está cheia. Estudantes levam sanduíches para comer na
grama, fazem da imensa Washington Square um enorme pátio de recreio. Sentam-se
ao longo dos bancos circulares, discutem problemas, estudam. Vi um estudante atentamente lendo alguma coisa ao meu lado, e
tomando notas. “Introdução à Filosofia”. É lá que fica a Universidade de N.
York. Lá também os artistas costumam alugar ateliers para trabalhar durante o
dia. Reúnem-se à noite no Cedar Bar, junto à Universidade, para trocar ideias e
beber. Há artistas que vêm de longe para participar do ambiente de inspiração
que o Village lhes dá. Percorro a Washington Square, pensando como podem as
opiniões serem tão diferentes. Prefiro uma quadra mais autêntica da imensa
Washington Square. Há uma cerca para separar as crianças dos grandes. Os
grandes lá estão, mostrando a “pinta” de gente diferente. As crianças não os vêem,
brincam inocentes no cercado de areia. Sujam as carinhas, constroem castelos.
Cabelos ruivos, narizinhos sardentos, como são lindas as crianças americanas!
Aquele pequenino acabou de comer areia, a mãe vem socorrê-lo correndo. A mãe é
pintora e minha colega na Art Students League. Será que estas crianças, quando
crescerem, vão ser também existencialistas?
Bato uns slides da turma de guris, da miniatura do Arco do Triunfo, do
povo sentado lendo.
James Brooks
Marcaram-me um appointment com Mr. James Brooks. Mr.
Brooks é o autor da célebre frase que citei no meu trabalho sobre arte.
“A superfície da tela é o ponto de encontro daquilo
que o pintor conhece, com o desconhecido que ali aparece pela primeira vez.”
É um dos melhores artistas americanos, e tem atelier
neste bairro modesto e pobre de N. York. Tomo um táxi para não ter de
atravessar a pé as ruas. Há bêbados e homens discutindo, e eu prefiro parar
exato onde preciso descer. Mr. Brooks espera-me às 3 horas. Foi avisado da
minha visita. Às 3 horas em ponto, estou tocando a campainha de baixo. O Studio
fica no 3o andar. “- Are you Mrs. Andrés?”. Mr. Brooks está à minha
frente, leva-me por aquelas escadas enormes até seu atelier. Nunca vi um Studio
tão grande! Há quadros empilhados nas paredes, painéis enormes, e os últimos
desenhos sobre a mesa. Mr. Brooks mostra-me tudo, pergunta sobre o Brasil, interessa-se
por minha exposição. Gosto de conhecer artistas, de ver de perto como
trabalham. É melhor e mais interessante do que ver os quadros dependurados no
museu. Oferece-me café feito por ele, na hora, conta um pouco do movimento
artístico de N. York. “- Sou do Texas, mas há muito moro aqui. New York é o
centro para onde convergem artistas vindos às vezes de todas as partes do
mundo”. Os artistas do leste e oeste americano têm um estilo completamente
diferente. Notei isto nas minhas viagens. Aqui em N. York predomina a escola de
Pollock, Hoffman, De Koonnig, Stamos e Brooks. São violentos, expressivos,
completamente informais. James Brooks pertence à categoria dos informais, suas
fases são firmes e conscientes e há uma certa unidade entre elas. Todo o itinerário
de sua pintura está aí nos quadros que me mostra. Este itinerário será
publicado em livro brevemente. Mr. Brooks é polido com as senhoras, como todo
americano. Desce comigo as escadas, leva-me até o ponto mais próximo de ônibus.
“Vou levá-la até a Broadway, não convém que ande sozinha por aqui”.
*Fotos da internet
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segunda-feira, 7 de março de 2016
VIAGEM AOS EUA III
Transcrevo aqui trecho de um diário de viagem aos EUA
em 1961.
Hoje fiquei muito feliz. Vendi um desenho em Seattle.
Recebi aviso de Mrs. Duzanne. Estava eufórica com a rapidez com que o quadro
foi vendido. No mesmo domingo que saí de lá ele foi vendido. Escreveu-me
contando. Estava escutando o rádio, quando entraram dois casais na galeria.
Vieram ver outra exposição. Sentaram-se e começaram a folhear os catálogos em
cima da mesa. Interessaram-se especialmente por um vindo do Brasil. Um dos
casais havia recentemente feito uma viagem ao Brasil. Mrs. Duzanne foi buscar
meus desenhos. Interessaram-se por um denominado “Boats” – “But, it is just
like Brasil. ”. disseram. Compraram o desenho. Mrs. Duzanne ficou admirada com
a rapidez. Escreveu-me, mandou-me o cheque de 65 dólares. Ficou com 35 para
ela, o desenho foi vendido por 100 dólares, sem moldura, nem nada. Imagine, um
desenho, 20 mil cruzeiros..., mas a alegria maior tive com aquela pequena
frase: “It is just like Brasil! ”. Representa a pátria ser parecido com ela;
não pode haver maior alegria para uma brasileira…
Vou comprar selo na portaria do hotel e lá eu encontro
com Mr. John Pogzeba. Mr. Pogzeba é conservador do museu. Nasceu na Polônia,
mas reside há muitos anos nos EUA. Está me cumprimentando sorridente – “Vi seus
desenhos, gostei muito. Você quer me vender um?
Não é para mim, é para o museu. Estive pensando em comprar quadros de
três artistas brasileiros. Você será um deles…”. Santa Fé, New México, é a
cidade mais artística dos EUA. Cada pedra da rua respira arte. E para mim seria
muito agradável figurar num museu de Santa Fé. Estou interessada na venda. “-
Os desenhos estão com Mrs. Martin, quando eles chegarem o senhor poderá escolher
o que mais lhe agrada. ”
Mr.
Maussy vem trazer meus desenhos. Estou com a pasta na mão, escutando o que ele
me diz. Mr. Maussy é o meu responsável aqui e um dos diretores do museu. Está
me convidando para expor lá. “- Será muito interessante para nós ter uma
exposição de artista brasileira. Seus desenhos precisam ser vistos aqui…”.
Estou meio pasma com tantas solicitações. Primeiro, o conservador querendo me
comprar um para o museu. Agora, o diretor me oferecendo a sala para expor. “ –
Nós lhe remeteremos direto para o Brasil, se não puder vir na ocasião… faremos
tudo, a senhora não terá despesa alguma…”
Corcoran
Gallery
A Corcoran Gallery tem duas correntes de arte. Uma
acadêmica e outra moderna. Mr. Forsytle é o professor moderno. Tem um processo
de ensino todo pessoal, e está me mostrando alguns slides de sua coleção.
Mostra-me trabalhos de alunos e eu vou separando alguns para levar para o
Brasil. Ensina na Corcoran, no meio de acadêmicos, deve lutar contra a
corrente, aí. Por isso mesmo, procura aperfeiçoar seus processos de ensino.
Conto-lhe sobre Sister Madalena, e seu ensino ultramoderno de arte. “- A
senhora é de sorte! Correr tantos museus e escolas, ver tantas coisas! Sou
americano e ainda não tive esta oportunidade”. Mr. Forsytle dá-me endereços em
N. York. Conhece gente lá, já expôs também em Green Village. Agora é professor
da escola mais tradicional de Washington. Lá, ensinaram os acadêmicos, em
tempos passados, e ainda ensinam, até hoje. Corri a escola, vi os trabalhos. Há
professores que ensinam aquele processo antigo de Chambelland e Oswaldo
Teixeira! No meio deles, impondo, com a força renovadora de uma arte nova, está
o jovem professor Charles Forsytle. Usa colagem, fotos, diversos meios de
procurar inspiração. Das fotografias o aluno tira apenas os planos,
transformando-os em elementos abstratos. Bom exercício de composição e
combinação de cores. Há também aquele processo de se jogar tintas sobre o
papel, deixando as cores escorrerem. O aluno repete o exercício umas 50 vezes.
No final, o resultado deve ser bom. Não há o perigo de se viciar, de se ficar
preso a um ensino tradicional. Não sei se Mr. Forsytle dá aulas para
principiantes. Seu método deve ser bom para aqueles que já têm algum treino de
desenho. Com uma disciplina de branco e preto e uma segurança preliminar, o
aluno naturalmente compreenderá melhor esta liberdade de improvisar, e deixar
que o acaso colabore na sua criação artística.
*Fotos da internet
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quinta-feira, 3 de março de 2016
VIAGEM AOS EUA II
Na minha viagem aos EUA em 1961, conheci Mrs.
Phillips, que se tornou minha amiga. Transcrevo abaixo trecho do meu diário da
época, com foto do nosso encontro em Washington.
Mrs. Phillips escreveu-me gentilmente um cartão.
Marcou-me um appointment a que não posso faltar. Encontro marcado na Pan
American Union às 3 e meia da tarde. Espero-a no lobby. Ando de um lado para
outro, imaginando como seria a famosa lady. Não a conheço pessoalmente, sei que
deve ter uns 55 anos e pinta. Tem a melhor galeria de arte dos Estados Unidos,
a Phillips Collection. Finalmente chegam, Mrs. Phillips veio com o marido. Já o
conheço daquela vez que lá estive. Vamos até o local da exposição. Mrs.
Phillips mostra-se entusiasmada com os desenhos, compra um para sua coleção.
Para mim, isto é uma grande vitória. Mrs. Phillips coleciona quadros de
artistas famosos, ter um desenho na sua coleção significa muito para um
artista. Saio feliz da Pan American Union com o casal Phillips, com o fato de
estar presente na melhor galeria de Arte dos EUA. A Phillips sempre foi a minha
galeria preferida. Sempre admirei o gosto que tem no arranjo dos quadros, nas
luzes, na escolha dos trabalhos. Estou contente no meio deles. O carro sai
conosco da União Pan Americana. O chauffeur nos cobre as pernas com uma manta
de lã, Mr. Phillips está ao meu lado. Conversamos sobre arte. A estrada é
linda, leva-nos além de Georgetown à mansão dos Phillips. Entro meio sem jeito
naquele palácio. Vem um mordomo abrir as portas, dois cachorros de raça nos
recebem festivamente. Já me acostumei à presença de cachorros dentro de casa.
Eles percebem que sou amiga, chegam perto de mim, aliso-lhes o pelo. Já não
tenho medo. Sei que não mordem, são educados. A casa é uma imensa galeria de
arte. Às vezes, trocam os quadros, o Salão Grande agora está cheio de Bonnards.
Levanto-me para ver de perto. Quadros de Rouault, Braque, Picasso, Puvis de
Chavannes. Nunca havia visto antes um Puvis de Chavannes ao natural, apenas por
reprodução. Admirei-me das cores suaves que emprega. Há um imenso Bonnard em
tons de rosa, uma praça de Paris em plena neve. A neve é cor-de-rosa, o céu é
cor-de-rosa. Quase não me foi possível engolir o chá. Estava tão surpresa, que
ele fazia barulho na garganta ao descer, gole por gole. Mr. Phillips indagou
muito sobre o Brasil. Tive de escrever o nome de Guignard para ele. Talvez se
lembre de comprar um para sua coleção… Mrs. Phillips é discreta, fala pouco, mas
muito simpática. Mostrou-me um dos seus quadros em cima da lareira, um grande
painel representando uma paisagem de montanhas. Mrs. Phillips gosta de pintar
paisagens. Também, a casa é rodeada de paisagens belíssimas. Fica situada no
alto, com os gramados cercando árvores plantadas sobre a grama. Ao longe,
enxerga-se a paisagem de Washington. Demoro-me olhando a vista. Como deve ser
bom pintar dentro de um cenário tão deslumbrante e convidativo! … O chauffeur
vem me trazer em casa. Pelo caminho, indaga sobre minha terra. Está curioso por
saber notícias do Brasil. Conhece o Rio de fama e Brasília de postais.
Phillips Collection
Esta é uma galeria em que os quadros podem ser
realmente contemplados. É por isso que todo o mundo entra devagarinho, pisando
nas pontas dos pés. Entram com o respeito com que entram numa igreja, conversam
baixinho, para não perturbar a paz e a poesia que flui de cada quadro. Sento-me
horas em frente ao Bonnard da sala de cima, representando uma menina com o
cachorro. Interessa a poesia daquele vermelho, único toque luminoso no centro
do quadro. Bonnard não é o meu artista preferido, mas essa menina de vermelho
tem alguma coisa de diferente e inédito. Na sala de Rouault há uma figura
estranha sentada na minha poltrona. Na poltrona verde, de veludo, onde costumo
me assentar. A figura parece de cera, está imóvel. Sentou-se debaixo de um
quadro, a luz ilumina-lhe o rosto, também. Deve ter uns 18 anos e é de uma
palidez impressionante. Só o rosto iluminado, cabelos pretos, blusa preta, calça
preta… Está olhando horas seguidas o mesmo quadro que eu também admiro, “O
Cristo com o soldado”. Peço lápis ao porteiro para tomar notas, e subo para ver
a salinha de Klee. Depois desço, venho escolher postais de quadros. Talvez seja
a última vez que estou entrando na Phillips Collection, preciso reunir alguns
cartões. Escolho os que mais me agradam e vou ao porteiro. O porteiro é um
velhinho simpático. Está sempre naquela mesa de entrada, treinando taquigrafia.
Trabalha há muito tempo para o Mr. Phillips. Já me viu tantas vezes entrar e
sair que meu rosto lhe é familiar. “- A senhora é a artista que veio do Brasil?
Não vou lhe cobrar os cartões, leve-os de presente…”
*Fotos de arquivo e da internet
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terça-feira, 1 de março de 2016
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