Escrevo de dentro do Boeing da United Airlines. Vim de 1ª classe,
assentos confortáveis, melhores que a minha viagem do Brasil. Expectativa. O
Boeing ainda não levantou vôo. Enorme campo, coberto de neve, somente a pista, limpam para a aeronave subir. O sol do
poente, muito vermelho, levanta-se no meio da fumaça e da neve, como as manchas
de um quadro de Stamos. Vi este quadro
ontem numa galeria em N.York. Enorme
campo branco e no meio do espaço manchas dramáticas de vermelho, alaranjado. Igualzinho ao quadro de Stamos, um dos
maiores expressionistas, americanos.
Resolvi
frequentar um curso noturno de arte na tradicional Art Students League. Fico
admirada de ver tanto academismo nas paredes e nas salas. Vou passando depressa
pelos corredores, até atingir a sala de Mr. Stamos. Mr. Stamos é um dos poucos
professores modernos da escola. Conheci-o de longa data, através de um catálogo
que o consulado americano me enviou no Brasil há um ano. Aquele quadro vermelho
e negro, com um grande espaço branco, impressionou-me de início. Mr. Stamos tem
consciência do que faz. Considerei-o o melhor dos pintores americanos por
aquele catálogo. Considero-o ainda o melhor da costa leste. Tem uma capacidade
de síntese impressionante e extraordinária força de expressão. Agora, virei
estudante. Sou sua aluna. Comprei um estoque
novo de tubos e telas. Esses tubos, enfileirados dentro da caixa, dão-me uma
certa alegria de viver. Com a ajuda deles, posso me expressar, isto me dá uma
emoção logo de entrada. A sala é iluminada com enormes lâmpadas, cercada de
prateleiras. Dezenas de estudantes trabalham aí. Veem-se restos de papéis
sujos de tinta, os cavaletes são imundos de tintas, as portas são sujas de
tinta. Há tintas e quadros por todos os lados, quadros modernos,
expressionistas, sem o controle e a disciplina da nossa conhecida escola
brasileira. A pintura vem à tona espontânea, saindo diretamente do pincel para
a tela, sem o estudo prévio de um croqui. Fico observando os colegas e começo
também a pintar. Tenho as tintas à minha frente, uma tela enorme para ser
usada. Quero usar cores bem claras, para não ser chamada de decorativa. Não
quero ser decorativa, quero ser expressiva. Pinto o espaço pensando nos imensos
voos que dei. Não são mais navios, são céus, céus americanos, guiados por mãos
brasileiras. Estou contente de começar a ser livre. Agora, posso pintar sem o
medo de errar. Posso pintar livremente, sem a medida da régua, do espaço
dividido geometricamente, e, engraçado, uso, às vezes, o pincel como Guignard
me ensinou, há anos. Ponho duas, três cores, e faço o pincel rodar. As aulas de
Guignard voltaram à tona, depois de tantos anos. Os alunos me observam, mas não
tenho medo. Mr. Stamos ainda não viu meus quadros. Vem duas vezes por semana
para criticar. Reúne em círculo os alunos, e um por um, são observados os quadros.
Faz a crítica, dá sugestões – não toca no quadro, nem dá pinceladas para
mostrar. Critica, apenas – depois pede sugestões aos alunos. Depois de uma hora
de crítica, retira-se e deixa a turma sozinha.
Mr. Stamos gostou do meu trabalho e os colegas me cercaram
com perguntas. Tive de responder que viera do Brasil e também que eu já tinha
muitos anos de arte. Naquele momento conquistei novos amigos nos EUA, todos
ligados à “Action Painting” (pintura de ação)
As
aulas de Theodorus Stamos influenciaram a minha pintura. O meu abstrato
informal passou a ser mais livre e corajoso. Depois dessa viagem aos EUA em
1961, passei a pintar diretamente em grandes telas, sem estudos preliminares.
(Trecho do diário de viagem aos EUA, 1961).
*Fotos da internet
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