Acabei de pôr em liquidação as telas inacabadas. Meus
colegas americanos disputaram a herança de minhas coisas. Dei duas telas esboçadas
para um, a lata de terebentina para outro; o terceiro ficou olhando e me pediu
a chave do armário. Com a entrega da chave na portaria, tem direito a receber
dois dólares de reembolso. Foi uma despedida feliz.
Turma
desinibida, esta! Pintam loucamente, sem complexo, telas enormes. Não existe a
preocupação da tinta, nem do preço do material. As cores são atiradas na tela a
jato, sem o cuidado de um croqui preliminar. Mr. Stamos faz questão do quadro
ser pintado, não desenhado. A forma é o próprio quadro depois de pronto. As
cores têm de vibrar, as pinceladas devem ser livres, espontâneas. Gostei da
maneira. Precisava há muito deste contato com gente corajosa, para largar o
medo de enfrentar a tela de um jato. Nunca imaginara poder me embrenhar em
semelhante aventura. A aventura de falar diretamente, sem intérprete, para a
tela branca. Consegui com facilidade me fazer expressar. Não sei se meus
quadros estão bons, são grandes tentativas de libertação. Os colegas
interessam-se por meus problemas. Perguntam onde aprendi a pintar, um deles, o
mais caladinho e tímido de todos, veio indagar, num intervalo, se não teria,
por acaso, estudado em Paris. Morou em Paris muitos anos, estudou com André
Lhote. Há o americano que já esteve na 2a Grande Guerra, e lá
conheceu um brasileiro; há o argentino baixinho que briga e brinca como uma
criança com aquela loirinha da turma. A loirinha é bonita e jovem, casada com
um engenheiro, o marido veio buscá-la outro dia, na escola. O argentino tem um
Studio em Greenwich Village e pinta o dia inteiro. Não trabalha fora, mas a
esposa trabalha. Agora, anda às voltas com a loirinha. Tive vontade de avisar a
pequena, mas não tenho nada com isto, o melhor é ficar calada. O monitor da
turma pinta quadros deprimentes em fundo negro. Já dançou no carnaval do Plaza
Hotel, em N. York, ficou encantado com a animação do brasileiro. Coisa de
louco! Para demonstrar, puxou cordão com o argentino dentro da sala. O
argentino é fã da música brasileira. Assobia samba o tempo todo. Aquele ruivo
de cabelos compridos chama-me de little lady. Espantam-se da minha produção em
massa. Resolvi dar as duas telas para aquele que já esteve na guerra. É
dedicado à pintura e parece não ter muito dinheiro. Pinta quadros pequeninos,
poupa as tintas. Ficou encantado com a herança.
Aqui em N. York predomina a escola de
Pollock, Hoffman, De Koonnig, Stamos e Brooks. São violentos, expressivos,
completamente informais.
James Brooks pertence à categoria dos informais, suas
fases são firmes e conscientes e há uma certa unidade entre elas. Todo o
itinerário de sua pintura está aí nos quadros que me mostra. Este itinerário
será publicado em livro brevemente. Mr. Brooks é polido com as senhoras, como
todo americano. Desce comigo as escadas, leva-me até o ponto mais próximo de
ônibus. “Vou levá-la até a Broadway, não convém que ande sozinha por aqui”. (Trecho
do diário de viagem aos EUA, 1961).
*Fotos
da internet
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