terça-feira, 30 de abril de 2019


UM RETIRO NOS HIMALAIAS – UMA PEDRA EM FRENTE À JANELA


Shiva Lingam é a energia masculina e feminina de Shiva, cultuado pelos hindus como o princípio de tudo o que existe.

Hoje, no meio das pedras colhidas na praia ou nos jardins do retiro onde estamos, encontrei a minha pedra.

Lavei com cuidado todas as pedras, separei as mais bonitas e menores, coloquei-as junto à minha cabeceira numa bacia. À noite a chuva aumentou, as luzes se apagaram e a escuridão era total.

 Ouvi passos na sala ao lado e me pareceu um vulto com uma lanterna na mão, iluminando o chão.

Estava sozinha na cabana, mas não tive medo. Resolvi segurar uma pedra como proteção, e, apalpando no escuro, encontrei uma que me pareceu indicada. Fazia frio, minhas mãos estavam geladas e eu procurava algo que me aquecesse. Esfreguei a pedra nas mãos, e comecei a senti-la muito mais pelo tato do que pela vista. Coloquei-a no meu corpo, junto a mim, e fui tocando todos os chacras.

Lá fora, os relâmpagos iluminavam o céu. Dentro do quarto vi estrelas em forma de mandala.

Só pela manhã consegui ver a pedra. O formato era exato, o do Shiva Lingan e , quando a coloquei no patamar da janela, ela ficou em pé com a maior facilidade. A energia de Shiva aqui está, simbolizada nesta pedra nascida no rio Ganges. (Trecho do meu Diário de viagem, 1990)

*Fotos de Maria Helena Andrés e da internet 

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UM RETIRO NOS HIMALAIAS - REFLEXÕES


Dunda é a cidadezinha que se vê em frente e Ramola é o encarregado da correspondência. Ninguém conhece este retiro e é a maior joia que se pode imaginar. É onde se respira espontaneamente a presença de Deus.

Lá embaixo, as águas muito claras do rio Ganges vão batendo nas pedras e criando ondas. Há uma distância de muitos metros da região onde estamos e o rio embaixo, mas resolvemos descer o barranco, escorregando sobre as pedras. Elas são redondas como se tivessem sido modeladas por mãos de artistas. Pedras de várias cores, às vezes se assemelham ao Lingam dos hindus, outras vezes parecem ovos.

De qualquer forma estão ali, empilhadas, distribuídas em enorme quantidade sobre a areia, os vários símbolos do princípio da vida. Realmente, a proximidade  da nascente do Ganges, guardada no seio dos Himalaias, simboliza a vida nascendo, crescendo e fluindo em constante movimento.

A vida flui como um rio, não pára nunca, e o rio sagrado vai nos contando histórias desta Índia milenar. Em frente, levantando bandeiras coloridas em todas as casas, uma pequena comunidade tibetana se aloja, protegida pelas montanhas.

À noite, olhando para as estrelas, sinto a presença de Deus. Ele está aqui na brisa que nos roça a pele, na grama, nas pedras, nas árvores e no perfume das flores. Está dentro e fora de nós e isto Krishnamurti nos lembra o tempo todo. Esta presença está implícita nas suas palavras. Não existe método para se chegar a ele. Qualquer método é como querer aprisioná-lo dentro de uma concha. Lembro-me do professor polonês que fez uma palestra em Chenai.

“Vivemos a época da ecosofia, isto é, filosofia da ecologia. Devemos reverenciar a vida, reverenciar “tudo que tem vida!”

As palavras do professor ressoam em meus ouvidos e também procuro reverenciar a vida.
A primavera chegou com uma chuvinha fina, derretendo as neves dos Himalaias. A água vem descendo da montanha e os campos de trigo se tornam mais verdes. Nunca choveu nesta época, nos disse Ramola, o “manager” do retiro.

Enquanto isto, aproveitamos para um recolhimento maior. Da vidraça eu vejo a chuva cair lá fora.
Ramola estava sentado na biblioteca, escrevia quando cheguei. Recebe estrangeiros do mundo todo, conversa com todos como um filósofo, como um mestre que não tem pretensão de ser.

“Estou feliz aqui. Sinto uma alegria em servir, em não criar fronteiras com os visitantes. Na realidade, não existem fronteiras no mundo, nós é que as criamos com a mente. Mas a maneira de quebrar estas fronteiras criadas pela mente é não lutar contra elas, apenas constatar o fato de que elas foram criadas pela própria mente, que deseja se desfazer delas. Criamos um envelope em torno de nós mesmos. Existe a separação entre este envelope em torno de mim e o envelope em torno do outro. Neste espaço, entre o observador e a coisa observada, estão todos os problemas da vida.”

Ramola conta um pouco de sua vida. Desde criança foi muito religioso, sua avó foi uma grande alma espiritual, reverenciada pelo povo da redondeza. Agora, sua missão é desfazer os mitos criados pela mente, abrir a janela para ver o céu.

A mente cria fragmentações que tentam sobreviver sob o mesmo céu, muitas vezes sem tempo suficiente para olhar as estrelas, ou contemplar a beleza do rio. Isto acontece no mundo todo em geral. Quebrar os departamentos que desejam empacotar a verdade em pratos feitos, fazer desaparecer por completo o EU e o TU, para apenas permanecer a ESSÊNCIA.

Aqui estamos, cada um numa cabana, observando o nosso silêncio interno. E neste silêncio conseguimos ouvir o pássaro que canta alegremente em cima da árvore, anunciando a chegada da primavera. Uma nova vida se abre para nós neste momento. Revivo neste momento as palavras de Krishnamurti:

“Olhar a vida com os olhos de criança.”
“Observar o problema, sem desejar modificá-lo.”
“Olhar os filhos como se olha o por do sol.”

Aqui, recolhendo como lembrança as pedras sagradas do rio Ganges, posso ter a mente mais limpa para alcançar a profundidade dos ensinamentos de Krishnamurti.
Para ele, a negação do passado é a ação mais positiva. Ser simples, perceber as coisas com o coração e a mente completamente limpas do passado, sem interferências.
As pedras do Ganges são redondas, buriladas pelo tempo. Quando as seguramos nas mãos não sentimos nenhuma aspereza.

“O passado são as memórias acumuladas. Estas memórias atuam no presente e criam nossas esperanças ou medos do futuro.”
“O estado de ver é mais importante do que o que está sendo visto”

Neste momento a chuva cai devagar sobre os campos de trigo e a noite desce sobre as montanhas como uma benção.

“A verdadeira vida religiosa é a libertação dos conceitos.”

Ver a chuva cair sem verbalizar a palavra chuva, apenas observar o movimento espontâneo da natureza, mergulhar neste movimento, limpar o pensamento, as memórias, os conflitos, as expectativas, nesta água que desce dos céus.

Planejamos subir a montanha amanhã, mas a chuva não vai permitir.
Cada vez mais sentimos a orientação interna desta viagem, a beleza do inesperado, daquilo que não foi projetado pela mente.

A tradição revela que no alto das montanhas estão os mestres em seu corpo etérico. Não estarão eles também presentes aqui, no silêncio da tarde e no murmúrio da água seguindo o seu curso natural?

Seguir a viagem sem traçar planos é sabedoria e nos ensina a viver plenamente.
A chuva das montanhas lavou minha alma e todo o meu passado se desfez. (Trecho de meu diário de viagem, 1990)

*Fotos da internet

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terça-feira, 16 de abril de 2019


UM RETIRO NOS HIMALAIAS


Rodando de novo pelas estradas da Índia. Saímos às 7 da manhã em direção ao alto dos Himalaias. Marília Paleta queria chegar até a nascente, 3.500 metros acima do nível do mar. Resolvemos parar no meio da montanha, nalgum lugar de paz, sem ashrams (comunidades espiritualistas). No mapa da região estava marcado com cor amarela os lugares religiosos. Mas nossa peregrinação teria de parar não em lugares religiosos convencionais, mas nalgum lugar onde não houvesse conceitos, imposições, regras, apenas o silêncio e a voz da natureza. Olhei o mapa, parei com o dedo exato no meio do caminho entre Rishikesh e a nascente do Ganges. Lá estava escrito “Uttarkash” em letras azuis. 

Lembrei-me de que perto de Uttarkash existe um lugar de retiro da Fundação Krishnamurti. Lugar procurado por pessoas ligadas aos seus ensinamentos.
Ali não há lugar para pensamentos. Não existe um guru a reverenciar, reverenciamos a própria vida em movimento, o rio Ganges correndo lá embaixo cheio de pedras redondas, as montanhas protegendo o vale, as plantações de arroz dispostas em patamares como nos Andes. Himalaia e Andes são montanhas irmãs. Aqui o “agora” pode ser vivido em plenitude.

“O êxtase da solidão nos vem quando não estamos mais com medo de estarmos sós, não pertencendo ao mundo nem apegado a nada”, nos diz Krishnamurti em um de seus livros.

Aos poucos começo a sentir a beleza de estar só em silêncio. A beleza de não ter opinião formada sobre as coisas, nem desejar modificá-las. A mente humana está sempre querendo algo diferente do que é, e nesse desejo a beleza do “agora” se perde.

Foi preciso percorrer a Índia de ponta a ponta, observar com atenção os vários caminhos elaborados pela mente humana, para compreender a necessidade desta jornada para a reflexão. Não foi à toa que o meu dedo parou no mapa, guiado por uma energia invisível.

Naquele momento estava indicada a direção a tomar. E a direção é esta, um lugar de retiro e silêncio interior onde podemos estar à sós. Nada de desperdício de palavras. Quando queremos nos comunicar, escrevemos. Agora leio as palavras de Krishnamurti: “Este silêncio é o vazio, para onde todas as coisas fluem e de onde todas as coisas nascem”.

A chuva caiu de madrugada e definiu a nossa permanência aqui. Cada um de nós tem um bangalô particular e só nos reunimos para as refeições no restaurante ou quando assistimos os vídeos de Krishnamurti. (Trecho de meu Diário de viagens, 1990)

Fotos de Maria Helena Andrés e da internet

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segunda-feira, 8 de abril de 2019


ASHRAM DE SIVANANDA


Estação cheia, vozes falando em dialetos diferentes vão formando um só ruído. Gente é que não falta na Índia! Assentados no chão aos montes, os indianos esperam.

Um grupo de homens, cassetetes na mão, parecem nossos guardas. Não sei porque usam este bastão, talvez seja para carregar a trouxa na ponta. São jovens e devem pertencer a alguma linha  de yoga, pois todos têm carimbado na testa o símbolo do “OM”. Agora eles se acercam curiosos, sorrindo. Observam a gente de perto, os sapatos prateados de Marília Paleta e o meu bolso de cintura. O indiano é essencialmente curioso com as coisas que vêm de lá, do outro lado do mundo.

Agora estou anotando a viagem depois de um repouso no Sivananda Ashram, à beira do Ganges. O ashram fica situado no alto do morro, entre árvores e cantos de passarinhos. Podemos repousar um pouco neste primeiro dia, antes que comecem as programações de meditação, cantos, Saisang, etc.

Chegamos cansados, depois de 2 dias em Haridwar, conduzidos até o ashram de “Baba” pelo professor Ramesh de Benares. Baba é um indiano que não fala nem uma palavra e só conversa escrevendo numa pequena lousa. Mora em Santa Cruz, Califórnia, e agora está no seu ashram da Índia, com um grupo de seguidores. Um deles é o professor que encontramos por acaso no trem. Simpático, amável, foi o grande companheiro de viagem, desde Delhi a Haridwar. Conversou sobre tudo, é muito culto, já morou nos EUA e agora vem buscar orientação a este swami silencioso à beira do Ganges. Organizou  a nossa chegada, ofereceu-nos chá e dividiu seu almoço comigo.

Assim são os encontros nas viagens. Pessoas que nos ajudam, fazem tudo por nós e depois desaparecem no tempo como a fumaça do trem.

A chegada no Sivananda Ashram foi cansativa. Subimos o morro onde os prédios foram construídos, carregando nossas malas. Nosso apartamento fica distante da entrada e para irmos ao refeitório temos de descer o morro. O ashram é enorme, com pátios centrais onde as vacas e os macacos se misturam com os devotos sem nenhum problema. No salão central, o retrato de Sivananda com o característico colar de flores do indiano.

As flores na Índia são plantadas especialmente para as grandes solenidades. Há dois dias atrás, em Delhi, estávamos sentadas no chão, enfiando flores para serem colocadas no Shiva Ligam do jardim da Escola Aurobindo, flores amarelas enfiadas umas nas outras.

Hoje, sentada à beira do Ganges, uma florzinha amarela veio seguindo o curso das águas e ficou parada nos dedos do meu pé esquerdo, como uma dádiva do Ganges. (Trecho do Diário de Viagem, 1990)

*Fotos da internet

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segunda-feira, 1 de abril de 2019


ARQUITETURA NA ÍNDIA


Existem escolas de arquitetura na Índia especialmente dedicadas à construção de templos, daí a harmoniosa conjugação de elementos arquitetônicos com elementos das artes plásticas, do desenho, da pintura, cerâmica e escultura.

As esculturas não são colocadas à posteriori, mas fazem parte integrante do conjunto. Ali o espaço interno se harmoniza com o espaço externo. Deuses coloridos, esculpidos entre frutos, animais e flores, observam as ruas movimentadas , onde grupos humanos também se misturam com flores, frutos e animais. 

Lá dentro, um elefante abençoa as pessoas com a tromba. Fizemos fila e recebemos a benção. Uma experiência bem fora do comum. 

Do lado de fora, um bando de macacos disputa os pedaços de Chapati ou idli que sobram dos pratos. Agarram-se às grades da janela e ficam esperando que seja jogada alguma sobra de comida para eles...

As construções na Índia dão muita importância aos espaços internos e externos. Há sempre jardins com árvores ladeando os ashrams, templos, escolas ou edifícios públicos. Pode-se ver as construções à distância, porque existe espaço entre elas. 

Recuando para o pequeno muro de pedra, pode-se ver o ashram com suas palmeiras em frente, e pavões coloridos tranquilamente sentados em cima dos telhados. As vacas atravessam as ruas em passo vagaroso e os carros param para deixá-las passar.

“Please, horn” (Por favor, buzine). A buzina também faz parte do burburinho da Índia.
Dentro dos ashrams, pés descalços e silêncio. Este silêncio é necessário para entrarmos em nosso espaço interno.(Trecho de meu diário de viagem, 1990)

*Fotos da internet

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