Dunda é a cidadezinha que se vê em frente e Ramola é
o encarregado da correspondência. Ninguém conhece este retiro e é a maior joia
que se pode imaginar. É onde se respira espontaneamente a presença de Deus.
Lá embaixo, as águas muito claras do rio Ganges vão
batendo nas pedras e criando ondas. Há uma distância de muitos metros da região
onde estamos e o rio embaixo, mas resolvemos descer o barranco, escorregando
sobre as pedras. Elas são redondas como se tivessem sido modeladas por mãos de
artistas. Pedras de várias cores, às vezes se assemelham ao Lingam dos hindus,
outras vezes parecem ovos.
De qualquer forma estão ali, empilhadas,
distribuídas em enorme quantidade sobre a areia, os vários símbolos do princípio
da vida. Realmente, a proximidade da
nascente do Ganges, guardada no seio dos Himalaias, simboliza a vida nascendo,
crescendo e fluindo em constante movimento.
A vida flui como um rio, não pára nunca, e o rio
sagrado vai nos contando histórias desta Índia milenar. Em frente, levantando
bandeiras coloridas em todas as casas, uma pequena comunidade tibetana se
aloja, protegida pelas montanhas.
À noite, olhando para as estrelas, sinto a presença
de Deus. Ele está aqui na brisa que nos roça a pele, na grama, nas pedras, nas
árvores e no perfume das flores. Está dentro e fora de nós e isto Krishnamurti
nos lembra o tempo todo. Esta presença está implícita nas suas palavras. Não
existe método para se chegar a ele. Qualquer método é como querer aprisioná-lo
dentro de uma concha. Lembro-me do professor polonês que fez uma palestra em
Chenai.
“Vivemos a época da ecosofia, isto é, filosofia da
ecologia. Devemos reverenciar a vida, reverenciar “tudo que tem vida!”
As palavras do professor ressoam em meus ouvidos e
também procuro reverenciar a vida.
A primavera chegou com uma chuvinha fina, derretendo
as neves dos Himalaias. A água vem descendo da montanha e os campos de trigo se
tornam mais verdes. Nunca choveu nesta época, nos disse Ramola, o “manager” do
retiro.
Enquanto isto, aproveitamos para um recolhimento
maior. Da vidraça eu vejo a chuva cair lá fora.
Ramola estava sentado na biblioteca, escrevia quando
cheguei. Recebe estrangeiros do mundo todo, conversa com todos como um
filósofo, como um mestre que não tem pretensão de ser.
“Estou feliz aqui. Sinto uma alegria em servir, em
não criar fronteiras com os visitantes. Na realidade, não existem fronteiras no
mundo, nós é que as criamos com a mente. Mas a maneira de quebrar estas
fronteiras criadas pela mente é não lutar contra elas, apenas constatar o fato
de que elas foram criadas pela própria mente, que deseja se desfazer delas.
Criamos um envelope em torno de nós mesmos. Existe a separação entre este
envelope em torno de mim e o envelope em torno do outro. Neste espaço, entre o
observador e a coisa observada, estão todos os problemas da vida.”
Ramola conta um pouco de sua vida. Desde criança foi
muito religioso, sua avó foi uma grande alma espiritual, reverenciada pelo povo
da redondeza. Agora, sua missão é desfazer os mitos criados pela mente, abrir a
janela para ver o céu.
A mente cria fragmentações que tentam sobreviver sob
o mesmo céu, muitas vezes sem tempo suficiente para olhar as estrelas, ou
contemplar a beleza do rio. Isto acontece no mundo todo em geral. Quebrar os
departamentos que desejam empacotar a verdade em pratos feitos, fazer
desaparecer por completo o EU e o TU, para apenas permanecer a ESSÊNCIA.
Aqui estamos, cada um numa cabana, observando o
nosso silêncio interno. E neste silêncio conseguimos ouvir o pássaro que canta
alegremente em cima da árvore, anunciando a chegada da primavera. Uma nova vida
se abre para nós neste momento. Revivo neste momento as palavras de
Krishnamurti:
“Olhar a vida com os olhos de criança.”
“Observar o problema, sem desejar modificá-lo.”
“Olhar os filhos como se olha o por do sol.”
Aqui, recolhendo como lembrança as pedras sagradas
do rio Ganges, posso ter a mente mais limpa para alcançar a profundidade dos
ensinamentos de Krishnamurti.
Para ele, a negação do passado é a ação mais positiva.
Ser simples, perceber as coisas com o coração e a mente completamente limpas do
passado, sem interferências.
As pedras do Ganges são redondas, buriladas pelo
tempo. Quando as seguramos nas mãos não sentimos nenhuma aspereza.
“O passado são as memórias acumuladas. Estas
memórias atuam no presente e criam nossas esperanças ou medos do futuro.”
“O estado de ver é mais importante do que o que está
sendo visto”
Neste momento a chuva cai devagar sobre os campos de
trigo e a noite desce sobre as montanhas como uma benção.
“A verdadeira vida religiosa é a libertação dos
conceitos.”
Ver a chuva cair sem verbalizar a palavra chuva,
apenas observar o movimento espontâneo da natureza, mergulhar neste movimento,
limpar o pensamento, as memórias, os conflitos, as expectativas, nesta água que
desce dos céus.
Planejamos subir a montanha amanhã, mas a chuva não
vai permitir.
Cada vez mais sentimos a orientação interna desta
viagem, a beleza do inesperado, daquilo que não foi projetado pela mente.
A tradição revela que no alto das montanhas estão os
mestres em seu corpo etérico. Não estarão eles também presentes aqui, no
silêncio da tarde e no murmúrio da água seguindo o seu curso natural?
Seguir a viagem sem traçar planos é sabedoria e nos
ensina a viver plenamente.
A chuva das montanhas lavou minha alma e todo o meu
passado se desfez. (Trecho de meu diário de viagem, 1990)
*Fotos da internet
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ARTISTA”, CUJO LINK ESTÁ NESTA PÁGINA.
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